Em livro pouco discutido no Brasil, Jean Pierre Faye analisa
um documento diplomático, bélico e político da Alemanha em conflito com a
França no século 19. Falo do Despacho de Ems, que se liga a Bismarck. Em 13 de
julho de 1870, Guilherme I reuniu-se com o embaixador francês. Do encontro
resultou um comunicado em forma de telegrama, de imediato remetido ao Chanceler
de Ferro. O político tomou o texto, cortou-o em pedaços e fez de certa
declaração anódina um insulto à França. Rápido, ele enviou o documento falso
para a imprensa europeia. Os dirigentes da Europa tiveram em mãos no dia
seguinte uma bomba poderosa contra os tratos pacíficos. O suposto insulto à
França nos trechos manipulados levou-a a declarar guerra à Alemanha.
Apenas 20 anos mais tarde Bismarck reconheceu ter
falsificado o telegrama. Ele mesmo apresentou o seu truque. Mas já em 1873 um
deputado alemão dizia claramente que o autor da mentira era o dirigente do
país. Um jornal de Viena, em 1892, contou a maneira como foi deturpado o
telegrama e citou as próprias sentenças de Bismarck sobre a proeza: do texto,
diz ele, “deixei apenas a cabeça e a cauda. Assim o telegrama parecia algo
completamente distinto. Li-o para Moltke e Roon segundo a nova versão. Ambos
exclamaram: ‘Esplêndido, causará efeito!’. Almoçamos com o maior apetite”. Faye
comenta: que uma falsificação tenha sido tomada pelos adversários como insulto,
compreende-se. Mas que o rei prussiano, conhecedor do texto original, tenha
acolhido a patranha é algo que mostra o poder das manipulações quando os ânimos
assumiram a guerra da propaganda que antecede o morticínio de seres humanos.
O truque bismarckiano possibilitou uma guerra, contribuiu
para unificar a Alemanha, piorou o sentimento antigermânico na França, ajudou a
semear a 1.ª Guerra Mundial, que fortaleceu os ódios cujo fruto foi o nazismo.
Falsificar notícias era prática comum dos políticos europeus, vezo cujo ápice
se deu no reinado de Goebbels, inimigo dos jornais que não jurassem pela sua
cartilha imunda. Goebbels foi capaz de manipular redações em favor do mando
totalitário. As análises de Faye são complexas e ajudam a entender a
falsificação das declarações oficiais em regimes que abolem as liberdades, a
começar pela de imprensa. Além da edição francesa original, temos uma excelente
tradução espanhola (Los Lenguajes Totalitarios, Ed. Taurus). Em nossa língua
existe o volume da Editora Perspectiva, sob o título Introdução às linguagens
Totalitárias: Teoria e Transformação do Relato.
Em 31 de março de 2020 o presidente Jair Bolsonaro
falsificou um texto emitido pelo presidente da Organização Mundial da Saúde
(OMS) sobre a quarentena no combate ao coronavírus. O responsável pela
instituição dizia ser obrigatória a ajuda aos que não têm renda, para que a
medida seja bem-sucedida. Lépido, o nosso presidente “cortou a cabeça e a
cauda” do texto e anunciou nas redes sociais a “tese”da OMS, que seria
exatamente igual à sua, a reclusão vertical. E, claro, repisando a volta do
comércio, da indústria, de todas as atividades econômicas e sociais à
“normalidade”.
A prática de Bolsonaro não é inédita. E nenhuma
originalidade existe na fabricação, por governantes, de fake news que os
beneficiem. Desde a Grécia democrática existiram manipuladores de fatos e
discursos. Um crítico poderoso de semelhantes boateiros é Platão. A guerra
contra os demagogos e sofistas definiu a ética a ser assumida pelos que recusam
o servilismo. O universo governamental desde então se divide entre os
dirigentes que não reconhecem limites em falas e atos e os dirigidos para os
quais o verdadeiro não é luxo, mas gênero de primeira necessidade.
Entre os que manipulam eventos e discursos, alguns chegam à
condição de estadistas, para o bem e para o mal. É o caso de Bismarck, gênio
político que beneficiou sua gente, por um lado, e a lançou no abismo da morte,
por outro. O telegrama de Elms está inscrito entre os pontos relevantes da
História moderna. Mas os pequenos artesãos do falso, como Goebbels, só ajudaram
a apressar a morte de seu povo, tendo como prefácio a matança que levou ao
Holocausto. Não existe falsificação inócua e todas produzem, como expõe Faye,
os efeitos deletérios do poder que aspira a abolir limites éticos em seu
exercício.
Com ódio à liberdade de oposição e à imprensa, Bolsonaro
segue a via da pequenez no mando. Ele esquece, no entanto, a distância entre a
sua falsificação e a de Bismarck. No século 19 não existiam rádio, TV,
internet, redes sociais. Ainda era possível reunir jornalistas e veicular um
texto adulterado como se fosse verdadeiro. Hoje não é possível fazer o mesmo:
para além dos seguidores incondicionais, milhões e milhões de seres divergem do
governante. Eles publicam o texto inteiro de todas as declarações. Mentir após
falsificar uma fala ou ato é tarefa impossível.
Uma nota final: Bismarck era Bismarck, Bolsonaro é
Bolsonaro.
*Professor da Unicamp, é autor de ‘Razões de Estado e outros
estados da razão’ (Perspectiva)
Nenhum comentário:
Postar um comentário