Alguns países já estão saindo da covid-19. Outros, como nós,
estão apenas entrando. O número de óbitos e a destruição de riqueza são
assustadores. Enquanto não houver uma vacina para impedir o contágio ou um
remédio para curar a enfermidade, permaneceremos na incerteza. Não existe ainda
uma luz no fim do túnel.
A crise do coronavírus não traz necessariamente fatos novos,
mas acelera processos de mudança em curso, que apontam para um novo cenário
global e uma nova agenda, que deverá incluir cinco tópicos prioritários: o
Estado, o neopopulismo, a desigualdade, o bem comum e a solidariedade.
O pêndulo da História está-se movendo de um ponto de mais
globalização e menos Estado para outro de menos globalização e mais Estado.
Isso não quer dizer que globalização volte para trás, mas que o Estado será
chamado a disciplinar os seus excessos e a assumir novas responsabilidades. Há
vários sinais nesse sentido.
A própria pandemia mostrou que os governos terão um papel
mais ativo nos serviços de saúde. Na economia, a crescente rejeição ao
estrangeiro, sob a forma de bens ou imigrantes, levou à intervenção do Estado,
quer sob a forma do protecionismo comercial, quer pelo bloqueio da imigração.
Em vários países, como no Chile, expressivas demonstrações de rua clamaram por
mais participação do governo na previdência social, na saúde, na educação e,
por vezes, na própria indução ao desenvolvimento. Por fim, o Brexit mostrou a
resistência do Estado nacional diante da transferência de poderes para um ente
supranacional.
O neopopulismo tornou-se um ingrediente corrosivo da
democracia. Governantes e partidos políticos não souberam entender, assim como
dar uma resposta apropriada e tempestiva aos profundos deslocamentos provocados
pela globalização. Sem ter a quem recorrer, a população buscou em líderes
populistas as respostas simples, por vezes falsas, para problemas complexos,
mediante uma comunicação com as mídias sociais. Mas, se é possível eleger-se
por meios digitais, é impossível governar sem os partidos políticos, sem a
conciliação de interesses e articulação política que lhes são próprias.
As transformações proporcionadas pela globalização
trouxeram, é verdade, progresso e prosperidade. Mas acentuaram a distância
entre segmentos sociais, assim como entre nações ricas e pobres. A crise do
coronavírus explicitou a correlação entre pobreza e contágio. Nos Estados
Unidos, o salário real das classes médias manteve-se estagnado desde a década
de 1970. As pesquisas de Thomas Piketty, nos arquivos fiscais na França,
revelaram que a desigualdade ao início do século atual é comparável à que
existia em princípio do século 19. Ou seja, em mais de dois séculos não se
havia alterado a distribuição da riqueza entre os mais pobres e os mais ricos.
O presidente Emmanuel Macron, em entrevista recente ao
Financial Times, distinguiu, na nova ordem em gestação, duas esferas distintas.
Uma é a da articulação entre os Estados em temas interdependentes, como saúde,
educação, mudanças climáticas, segurança, que chamou de bens comuns da
humanidade. Esses temas serão objeto da cooperação entre os Estados, no âmbito
de um sistema multilateral revitalizado. A outra esfera se refere ao exercício
da soberania e reflete a volta do Estado nacional e da geopolítica, assim como
à disputa hegemônica, em vários campos, entre Estados Unidos e China. Por isso
defende o fortalecimento da soberania europeia, especialmente em agricultura,
em indústria de ponta e tecnologia.
Por fim, como uma nota positiva, a nova agenda poderá trazer
de volta a solidariedade para com o sofrimento e o desemprego, agravados pela
pandemia. É crucial que a generosidade seja canalizada para efetivos programas
sociais, e não se esgote em compaixão e filantropia apenas.
Resta uma pergunta central: como tais demandas ou
aspirações, algumas ainda embrionárias, poderão plasmar a reorganização do
mundo pós-covid-19?
Os olhos voltam-se naturalmente para as Nações Unidas. As
circunstâncias, entretanto, não são propícias para replicar a experiência de
êxito da ONU. Não existe uma coalização de países, como a que se formou após a
2.ª Guerra Mundial, sob a liderança de Washington. Tampouco existe uma visão de
mundo compartilhada, nem mesmo para a reforma do sistema atual.
Ao contrário, as duas grandes potências parecem movidas por
um disputa hegemônica em torno de dois propósitos, por enquanto
irreconciliáveis : a China busca o reconhecimento de sua emergência econômica e
tecnológica; os Estados Unidos, pelo menos sob Donald Trump, mostram-se
determinados a conter essa emergência.
O novo momento sinaliza, assim, uma tensão entre uma
cooperação multilateral voltada para temas de interesse comum e interdependente
e o eixo bilateral da disputa de poder entre as duas grandes potencias. A
questão está em saber em que medida o eixo hegemônico bilateral abrirá espaço
para a consolidação da cooperação multilateral.
*Embaixador, Conselheiro de Felsberg e advogados
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