Militares com assento em gabinetes do Planalto e adjacências
estão vendo como é difícil fazer parte de governos quando o ato de governar é
presidido pela democracia. Panorama visto também por seus pares sem postos no
Executivo, a serviço apenas do Estado. Uma boa experiência tanto para os
remanescentes do regime autoritário quanto para as novas gerações lotadas no
Exército, Marinha e Aeronáutica. Ressalvadas as exceções de praxe, para todos
eles tudo indica serem pontos pacíficos a prevalência do poder civil resultante
da escolha livre do voto e a normalidade institucional da Constituição de 1988.
Nessa condição, depois de 21 anos no comando da nação, enquadraram-se ao ditame
familiar à vida nos quartéis: manda quem pode, obedece quem tem juízo. Nos
últimos 35 anos não houve dúvida quanto ao imperativo de obediência devida à
Carta Maior. Nesse período não se discutiram coisas como a hipótese de golpe
militar.
O problema começou quando quem assumiu o topo da linha de
comando mostrou não ter um pingo de juízo. Nessa hora, a de agora, as Forças
Armadas passaram de instituição benquista a alvo de suspeições golpistas. E por
quê? Grosso modo porque subverteram a ordem dos fatores e altas patentes
aceitaram se submeter às ordens de um capitão. Reformado por indisciplina,
acrescente-se. Na vigência de um regime de liberdades, garantia dos direitos
individuais e submissão aos deveres constitucionais tudo tem um preço.
Caríssimo e cobrado com juros da desmoralização quando se avalizam atos e
palavras que extrapolam aqueles preceitos. Seja pelo compartilhamento do mesmo
espaço, seja por ação e/ou omissão. No caso da junção dessas duas situações, o
efeito dificilmente deixa de ser desastroso.
“Ajuizados, militares têm problemas quando quem manda não
tem um pingo de juízo”
É o risco que correm as Armadas com o desgoverno de Jair
Bolsonaro. Versão corrente reza que há resistência à manutenção de Eduardo
Pazuello à frente do Ministério da Saúde a fim de evitar levar ao colo dos
militares a crise sanitária. Se verdadeira, a precaução é inútil. Primeiro,
porque foi ignorada pelo presidente ao anunciar a permanência do general “por
muito tempo” no cargo e pelo próprio ao incorporar mais treze militares à
equipe, assumindo o papel de testa de ferro da obsessão presidencial pela
cloroquina. Segundo, porque não são só os desacertos no combate à pandemia que
lhes pesarão sobre os ombros, mas também toda sorte de atitudes erráticas do
governo no qual estão envolvidos para muito além do colo, ultrapassando a linha
do pescoço.
Definitivamente não foi um bom negócio para os fardados esse
mergulho sem barreiras de proteção. A despeito da compreensão de que generais
que dividem mesa de reunião ministerial onde se fala aos palavrões não traduzem
o pensamento majoritário no contingente das corporações armadas, aos olhos da
sociedade não se estabelece essa separação. Não moderaram, como era a
expectativa, os modos do presidente. Resta saber o que farão, além de comunicados
oficiais de afirmação democrática, para evitar o alastramento do contágio e,
com ele, a perda da indispensável credibilidade.
Publicado em VEJA de 27 de maio de 2020, edição nº 2688
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