Entre a Casa Branca e a casa arrasada, a diplomacia do tiro
no pé
Impassível, o ministro das Relações Exteriores, Ernesto
Araújo, postou-se ao lado do Presidente da República no pronunciamento que se seguiu à queda do ministro Sérgio Moro, um
dos aliados que deram corpo à vitória eleitoral de Jair Bolsonaro. Os
desencontros sobre os rumos da economia também ameaçam a imagem ― e a permanência ― de outro avalista
eleitoral, Paulo Guedes, da Economia; mas Araújo continua com carta branca
para destroçar as tradições diplomáticas brasileiras. E não só isso.
Alguns especialistas chegam a duvidar que o Governo Bolsonaro tenha uma política externa clara.
Mas Araújo tem: seu objetivo, manifestado publicamente, é destruir condições
que permitiram ao Brasil ter uma diplomacia para chamar de sua, na defesa do
interesse nacional. Araújo protagoniza uma suicida diplomacia da “arminha”, de gangue, quase inteiramente
voltada a agradar um público interno radicalizado que se deleita em imitar o
gesto belicista de Jair Bolsonaro.
Como guia, essa política defende uma aliança acrítica com o
líder do mundo cristão ocidental, os Estados
Unidos, e, contraditoriamente, com governos nacionalistas radicais pelo
mundo. É a política externa do tiro no pé: ela procura minimizar, obstruir ou
simplesmente eliminar canais que permitem a um país como o Brasil exercer
influência própria sobre a região sul-americana e no mundo.
Além de acordos de livre-comércio, que o ministério da
Economia hoje comanda, deixando o Itamaraty em segundo plano, a única concessão à ação multilateral do Brasil já feita por
Bolsonaro foi o elogio à atuação das forças armadas brasileiras nas missões de
paz na ONU, das quais participaram alguns dos generais de seu Governo.
Em seu último ato histriônico, um artigo no qual acusou o
esforço contra o novo coronavírus de abrir espaço a um suposto
“comunavírus”, Araújo, a pretexto de analisar um artigo do filósofo Slavoj
Zizek, argumentou que submeter políticas nacionais às orientações da OMS seria “apenas o primeiro passo na construção da
solidariedade comunista planetária”. Na visão do chanceler brasileiro,
“globalismo é o novo caminho do comunismo”, e a batalha mundial contra a
covid-19 seria uma oportunidade “para acelerar o “projeto globalista” contra o
qual ele dirige os esforços da diplomacia
nacional.
No artigo, que provocou espanto nos meios diplomáticos,
Araújo descreve como agiria esse “projeto globalista” incompatível com a
política externa do Brasil: “por meio do climatismo ou alarmismo climático, da
ideologia de gênero, do racialismo ou reorganização da sociedade pelo princípio
de raça [referencia às políticas de ação afirmativa, como cotas para negros],
do antinacionalismo, do cientificismo (sic)”.
A falta de cuidado com as palavras, ao arrepio da prática
diplomática, levaram até a uma censura pública do Comitê
Judeu Americano, que exigiu do chanceler um pedido de desculpas por uma
analogia, feita por ele no polêmico artigo, entre medidas de isolamento social
e campos de concentração nazistas. Araújo não se desculpou; acusou as críticas
de “injustas e equivocadas” e, enjeitando sua própria analogia, culpou Zizek
por trazer à baila o tema dos campos de concentração.
Mais que folclórico, o projeto diplomático de Araújo rompe e
contraria uma tradição de posicionar o Brasil como protagonista global,
qualificado e interessado em reforçar a cooperação e negociação internacional.
Ele contraria, por exemplo, manifestações como o comunicado do G-7 em favor de
“coordenação global” para o combate à pandemia da
covid-19; e, pior, provoca constrangimentos reais na diplomacia
internacional.
O Brasil impôs veto, nos órgãos das Nações Unidas a referencias a
expressões como “gênero”, nos documentos oficiais, e votou contra
referências a promoção
de educação sexual. Em uma dessas votações, segundo um membro da
delegação brasileira em Genebra, um diplomata brasileiro foi abordado por um
colega africano, com a queixa de que a posição do Brasil aumentava suas
dificuldades em convencer políticos e membros do governo conservador em seu
país da necessidade de apoiar na ONU políticas modernas de proteção às mulheres
e à infância em matéria sexual.
Um dos mais ativos fundadores da Organização das Nações
Unidas, que lhe dá o privilégio de ser o primeiro a discursar nas assembleias
anuais da ONU, o Brasil hoje é alvo de chacota na organização, por manifestações
como a do chanceler e acusações levantadas por figuras próximas a
Bolsonaro, de que as Nações Unidas são uma peça no complô “globalista”
contra o patriotismo e os princípios cristãos. A diplomacia bolsonarista
boicota iniciativas da ONU, abertamente, para reforçar suas posições em
política interna, desde sua guerra contra uma suposta “ideologia de gênero” até
o desdém pelas políticas globais de direitos humanos.
Quando deixar a cadeira que ganhou graças à filiação às ideias paranoicas do ideólogo Olavo de Carvalho e à
proximidade com Eduardo, o filho 03 do presidente, Araújo terá plantado
obstáculos sérios ao trabalho de seus sucessores; seja ao ajudar a esvaziar
instâncias internacionais de política externa como a ONU, a OMS ou o Mercosul,
seja ao criar precedentes desmoralizadores para o Itamaraty em temas caros à
tradição do país ― como o apego a soluções diplomáticas para conflitos, a oposição a ações unilaterais, o reforço de órgãos
multilaterais para decisões que afetam a todos, ou a imagem do Brasil como um
mediador confiável, capaz de propostas técnicas de qualidade.
Ele terá sido coadjuvante da política de Donald Trump na paralisação dos mecanismos da
Organização Mundial do Comércio que atuam contra barreiras arbitrárias nas
alfândegas; terá excluído o Brasil dos esforços conjuntos ― e eventualmente, de benefícios ― no
combate à covid-19 patrocinados pela Organização Mundial da Saúde; e
colaborado, em papel secundário, para esvaziar a integração dos países do
Mercosul e enterrar iniciativas bem sucedidas de cooperação sul-americana
em Defesa, comércio e outros aspectos supranacionais que afetam o futuro da
região.
Com seus ataques aos acordos ambientais internacionais, terá
contribuído, também, para tirar
a legitimidade alcançada pelo Brasil nas discussões relevantes sobre o combate
ao aquecimento global. E, ainda, para reforçar argumentos dos ecologistas e outros ativistas, na Europa,
contra o acordo de livre comércio entre Mercosul e União Europeia, um dos
poucos resultados a apresentar da política externa de Jair Bolsonaro ― acordo
que diplomatas experientes afirmam estar moribundo, não só pelo crescimento das
pressões protecionistas no continente europeu, após a pandemia, como pelos
atritos criados por Bolsonaro e Araújo com dois dos principais Governos do
bloco, Alemanha e França.
Iniciativas multilaterais, como o projeto de integração de
infraestrutura das Américas (IIRSA), impulsionada pelo Banco Interamericano de
Desenvolvimento perderam destaque na pauta do Itamaraty “antiglobalista”. A
obra mais significativa apoiada pelo Itamaraty, o corredor bioceânico que
passará pelo Mato Grosso, está hoje abrigada sob a ProSul, uma iniciativa de articulação governamental entre governos à
direita no espectro político, inaugurada pelos presidentes do Chile e da
Colômbia e comunicada depois ao Governo brasileiro.
No que diz respeito ao BID, nos últimos meses, esteve mais empenhado em secundar os Estados Unidos na ação para
substituir o representante da Venezuela no banco, demitindo o indicado por
Nicolás Maduro e nomeando um escolhido pelo autoproclamado presidente Juan
Guaidó.
O papel subordinado às determinações da diplomacia de Donald
Trump, aliás, é uma marca que Araújo conseguiu impor mundialmente aos
diplomatas brasileiros. Funcionários graduados do Itamaraty ― falando
anonimamente, por temor de represálias ― revelam que, em questões relativas ao
Oriente Médio nas quais não se tem uma posição clara do Brasil, a ordem de
Brasília é consultar o Departamento de Estado americano, e acompanhar
Washington.
Nos Governos que assumiram após o fracasso do regime
militar (regime, este, que deixou o país com hiperinflação, crise fiscal,
dívida externa impagável, corrupção e
ineficiência no setor público e miséria com violências nas grandes cidades), a
política externa teve mudanças de foco ou de ênfase, mas não de substância. E a
ação diplomática nas instâncias internacionais foi usada para resolver
problemas e apontar soluções, muitas vezes buscando protagonismo.
Com José
Sarney, o projeto que resultou no Mercosul desarmou
desconfianças entre os militares de Brasil e Argentina, e, no governo seguinte,
permitiu uma imprevista cooperação em matéria nuclear. Com Collor, a concretização do mercado comum permitiu superar
resistências dos setores industriais nos dois países e derrubar barreiras ao
comércio que alimentavam ineficiência dos parque produtivos da região.
No Governo Fernando Henrique Cardoso, o ministro da Saúde José
Serra obteve vitórias na OMC e na OMS que facilitaram a produção e
comercialização de medicamentos genéricos. No Governo
Lula, apesar das críticas de opositores e veteranos diplomatas, houve uma
dose de pragmatismo que sepultou iniciativas na Venezuela, Bolívia e outros
vizinhos para caracterizar o Brasil como uma espécie de potência “subimperialista”
beneficiada no comércio e na infraestrutura; e gerou-se até um insuspeito acordo Brasil-Estados Unidos, com George Bush do lado americano,
em torno da popularização do etanol combustível ― boicotado pela Venezuela de
Hugo Chávez.
Enquanto o Governo FHC argumentava que o Brasil, pela falta
de recursos de poder (força militar e econômica, especialmente), deveria
escolher iniciativas internacionais de seu interesse, já existentes, para
aliar-se a elas, o Governo Lula, em sua “diplomacia ativa e altiva” avaliou que
poderia influir na própria agenda global, o que gerou iniciativas criticadas
como o esforço por um acordo
nuclear com o Irã, mas forte influência nos debates globais e relativo
êxito em alguns momentos, como na formação do G-20 da
OMC, dedicado a defender interesses dos países emergentes, além do convite
para participar de outro G-20, o político, que reúne chefes de Estados ricos e
emergentes para discutir saídas conjuntas para temas globais.
Há um consenso, entre os analistas, de que o Governo Bolsonaro, ao hostilizar a China, França e outras
potências, atacar os organismos multilaterais e orientar declarações de
autoridades para objetivos de mobilização de sua base mais radical, comprometeu
um esforço de décadas para dotar o Brasil do chamado poder brando, ou “soft
power”, que permite a um país alcançar resultados usando recursos de persuasão
e convencimento pelo exemplo.
O criador do conceito de soft power, Joseph Nye
Jr., diz que o poder brando “pode parecer menos arriscado que o poder
econômico ou o poder militar, mas, em geral, é mais difícil de usar, fácil de
perder e difícil de restabelecer”. É fácil imaginar a influência da política
“antiglobalista”, subordinada a iniciativas de parceiros ideológicos,
especialmente os Estados Unidos de Donald Trump.
É urgente a necessidade de tirar o chanceler paranoico do
comando da diplomacia. A pandemia levanta
o risco de aumento do protecionismo e de decisões unilaterais por parte das
grandes potências, e o crescimento da influência da China, primeiro país a
levantar-se após o choque da quarentena,
provocará respostas ainda imprevisíveis por parte dos outros grandes atores
globais.
Nos próximos anos, teremos um debate em torno das
estratégias para lidar com novas ameaças à saúde mundial, com a recuperação da
economia e com a reorganização das cadeias globais de comércio e serviços, em
meio ao aquecimento global e o aumento da influência da Ásia nos arranjos
globais. O Brasil já teve papel importante dessas discussões, e, hoje, é mero
espectador. Com a permanência de Ernesto Araújo ou algum equivalente genérico,
corre risco pior, o de assistir a tudo como o inconveniente no fundo da sala,
cujas manifestações só perturbam quem está levando a sério as negociações para
enfrentar problemas que afetam a todos.
Sergio Leo é um jornalista e escritor brasileiro,
especialista em relações internacionais
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