Um chefe de Estado demonstra sentimento quando o seu povo
sofre, vai aos locais onde a tragédia acontece, conversa com atingidos e os
conforta. Um governante mantém uma atitude de seriedade quando o país é
alvejado por alguma catástrofe. Tem palavras de encorajamento para os que estão
na frente da batalha socorrendo os enfermos. O que parece ser apenas protocolo
faz parte do conjunto de obrigações da pessoa pública. Isso não resolve o
problema, mas impacta muito mais do que se imagina a tomada de decisões. Só tem
chance de acertar o líder que entende a dimensão da dor coletiva.
A comunicação de quem governa não pode ser tocada por um
miliciano digital. Tem que ter sobriedade e propósito. Não pode ser uma corrida
por likes e lacrações. É a expressão do próprio Estado e por isso tem que ser
dirigida por pessoas que evitem os ruídos e as agressões, as omissões e os
conflitos. Mas nada substitui a palavra do líder, se ela for sincera e tiver
relação com os atos praticados.
Ir até o local onde se sofre é a norma de conduta mais
elementar que um governante tem que seguir. Não estar presente simboliza
desprezo pelos governados. Normalmente, os que visitam o povo em seu sofrimento
entendem a urgência da tomada de decisão. A pessoa pública conseguirá dialogar
apenas com alguns e ver somente uma fração do que acontece, mas algumas
histórias costumam falar por muitas e por isso, ao sair do seu casulo, onde os
áulicos lhe dizem que está tudo certo, o governante precisará ter ouvidos para
ouvir e aproveitar a chance de ver com os próprios olhos.
O Brasil se acostumou à dor sem consolo. Aceita que o
presidente faça piada quando a pandemia mata mais de mil pessoas num mesmo dia.
Na piada rimada do presidente — quem é de direita toma cloroquina, quem é de
esquerda, tubaína — não há apenas mau gosto. Há perversidade. Na terça-feira em
que ele fez a blague houve 1.179 mortes por coronavírus no país. Bolsonaro
parece querer exibir a indiferença, como se tivesse orgulho dela.
De vez em quando alguém tenta entender o tamanho do
acontecido calculando quanto as mortes representariam em quedas de avião — e
vários aviões caem diariamente no Brasil— ou usando métricas de outros
desastres, para ter uma dimensão da realidade. Isso é importante para que não
se fique anestesiado diante da repetição diária dos eventos. Há gente atrás de
cada número, como nos lembra o projeto “Inumeráveis”.
São inumeráveis as dores que atingem as famílias,
inumeráveis as aflições de quem teme ser o próximo ou que o mal ameace as
pessoas queridas. Inumeráveis as noites mal dormidas no Brasil nestes meses
difíceis. Inumeráveis as horas de angústia de quem luta por um leito em
hospital. Contudo, seguimos usando números para contar as vítimas de cada dia,
e assim dimensionar o sofrimento do país. Cada pessoa é única para os seus. E
depois que o registro da perda deixar de ser notícia, a família atingida
passará anos carregando as cicatrizes.
O ser humano foi dotado da virtude da empatia. Isso é
natural. O sofrimento não precisa ser pessoal, para que cada um o sinta de
certa forma e consiga se imaginar na pele do outro. Isso nos fez gregários.
Assim nasceram as sociedades, os povos se organizaram, os países foram
constituídos. Nessa ideia se inspiram as religiões. A cristã vai além de pedir
que entendamos o sofrimento do semelhante. Avisa que é preciso amar o próximo.
O presidente do Brasil nos revela até que ponto pode chegar
a insensibilidade ao sofrimento. Se o “E daí?” foi um tapa na cara do país, a
piada da cloroquina/tubaína, seguida da gargalhada, no dia dos mil mortos, foi
inqualificável. O dicionário da língua portuguesa parece gasto. As palavras
andam fracas demais para qualificar o comportamento adotado por Jair Bolsonaro
diante da dor dos brasileiros.
Quando tudo isso passar — e tudo isso passará — nós olharemos para trás e não acreditaremos que fomos capazes de tolerar esse tempo extremo. Veremos com espanto o pesadelo coletivo que atravessamos sem o amparo de palavras de conforto de quem o país escolheu para o posto mais alto da administração. Os erros de gestão terão levado muitas pessoas à morte, mas nem poderemos saber que vidas seriam poupadas. Muitos serão os filhos do talvez. Haverá, então, a batalha das versões e é apenas nela que pensa Jair Bolsonaro.
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