Em que pese o propósito golpista claro de uma militância de
corte neofascista que apoia Bolsonaro, o presidente, no presente momento – que
não fornece garantia alguma de se converter em tendência sustentada para o
futuro – está mais próximo de Michel Temer do que de Mussolini.
A aliança entre Bolsonaro e o Centrão é altamente
conveniente para ambos. O apoio do que outrora se convencionou chamar de baixo
clero pode garantir ao governo algum grau de efetividade para aprovar matérias
no Congresso, afasta a imagem de governo disfuncional. Constrói uma base mínima
para justificar sua existência.
A sensação de ingovernabilidade é, ao lado da impopularidade,
da falta de perspectivas econômicas, da existência de um projeto de poder
alternativo e da descoberta de um crime de responsabilidade, uma das condições
necessárias para que se desencadeie um processo de impeachment. O presidente
parece raciocinar que o quadro é mais favorável a um processo de impeachment do
que à concretização de um autogolpe que lhe confira poderes ditatoriais. Entre
a tutela e a ruptura, flerta com a tutela.
O Centrão foi uma salvaguarda poderosa para Temer concluir o
mandato, e pode ser assim com Bolsonaro. Há muito sentido em se pensar assim.
“Existe uma confluência de interesses. Bolsonaro quer blindar o próprio mandato
e garantir o dos filhos, o senador Flávio e o deputado federal Eduardo. O
Centrão quer garantir o caráter impositivo das emendas, o fundo partidário e
eleitoral e participar do bilionário Orçamento de Guerra”, comenta um veterano
observador da cena política de Brasília, o cientista político Antonio Augusto
de Queiroz, diretor do Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar.
Com estas ferramentas na mão, o Centrão garante a eleição de
seus protegidos na disputa municipal de 2020, que em algum momento ocorrerá. O
fracasso da organização do Aliança pelo Brasil para se converter no partido
bolsonarista este ano, nesse sentido, foi altamente conveniente.
Bolsonaro, em contrapartida, faz o jogo das nomeações, como
bem demonstrou ontem com a escolha do novo diretor do DNOCS, que será funcional
para a candidatura do deputado Arthur Lira (PP-AL) à presidência da Câmara.
Hoje a maior liderança do Centrão, Lira naturalmente tende a
se credenciar como favoritíssimo para a vaga de Rodrigo Maia na presidência da
Mesa Diretora, se o casamento entre Bolsonaro e Centrão fluir.
Uma Câmara presidida por Lira tende a ter momentos
emocionantes.No crepúsculo de seu poder, Rodrigo Maia detém ainda a faculdade
de desencadear um processo de impeachment, mas é pouco provável que o faça sem
ter certeza absoluta da vitória. Conta com a confiança plena dos principais
agentes econômicos do País, mas seu poder para influir na própria sucessão
rapidamente se esvai na medida em que fica claro que o DEM deverá repetir em
2022 a aliança com o PSDB. E é altamente provável que o partido do presidente
da Câmara fortaleça a candidatura presidencial de Doria.
Lira não tem compromisso com projetos presidenciais atuais
ou futuros. Ele assume acordos táticos, é um operador do curto prazo, daqueles
que cobram de maneira incisiva faturas não pagas. Seus interesses coincidem com
os do Planalto, mas a relação tem tudo para ser atribulada.
Trabalha também a favor de Bolsonaro, ao menos no Congresso,
a presença de Hamilton Mourão na vice-presidência da República. Mourão tem sido
um exemplo de moderação na posição de vice, mas algumas perguntas persistem no
Congresso: o vice-presidente seria capaz de recuar em situações-limite, como
Bolsonaro faz? Em momento de grande pressão da opinião pública, o que Mourão
faria?
As Forças Armadas estariam mais inclinadas a uma adesão cega
a aventuras presidenciais, se o presidente fosse Mourão?
Bolsonaro finge ser o outsider que Mourão na realidade é, esta é a suspeita
básica que existe entre parlamentares. Com uma pessoa como Arthur Lira na
presidência da Câmara, este fator há de ser medido cuidadosamente.
Para uma aliança entre Bolsonaro e o Centrão prosperar,
talvez tenha que haver um sacrifício supremo do presidente da República, uma
concessão que beira o insuportável para ser feita, que é a demissão de Paulo
Guedes.
O ministro da Economia é um empecilho nesta nova argamassa.
Sua agenda de privatizações, rigor fiscal absoluto e Estado mínimo não é
compatível com o modelo de governo que o Centrão necessita para se aliar. Se
Guedes não abrir mão da agenda de ajuste, subirá a pressão para que ele seja
atropelado no processo, acredita Queiroz.
Um sinal eloquente disso foi a aprovação, pela Câmara e pelo
Senado, da brecha para reajustes salariais de diversas categorias do
funcionalismo. O aviso de Bolsonaro, ao lado de Guedes, de que vetará o
dispositivo, mostra que o presidente, por ora, não está disposto a soltar a mão
de seu ministro da Economia.
A alegada inadequação da agenda de Guedes às necessidades do
mundo real não comove a cúpula da indústria, que ontem estava lado a lado com o
governo federal para pressionar o Supremo a colocar em segundo plano a
preservação de vidas na pandemia.
A pressão sobre o Supremo por enquanto parece ser apenas um
gesto retórico. Ao sugerir que o governo federal crie um comitê de crises para
coordenar soluções com as partes envolvidas na pandemia, o presidente do STF
deixou claro que o problema não era com ele. Devolveu a bola ao campo
adversário. As matilhas que seguem fanaticamente o presidente já estão
convocando manifestações antidemocráticas para este fim de semana. Este jogo
está em andamento.
O mais importante no gesto de ontem é que lá estavam o
grande capital, os ministros militares e o presidente, todos prestigiando
Guedes. A questão é por quanto tempo o presidente conseguirá sustentar o fogo
para preservar o perímetro de segurança em torno do ministro. O presidente pode
ter que fazer uma escolha amarga.
*César Felício é editor de Política.
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