sexta-feira, 8 de maio de 2020

A FATURA A SER PAGA

César Felício, Valor Econômico

Em que pese o propósito golpista claro de uma militância de corte neofascista que apoia Bolsonaro, o presidente, no presente momento – que não fornece garantia alguma de se converter em tendência sustentada para o futuro – está mais próximo de Michel Temer do que de Mussolini.

A aliança entre Bolsonaro e o Centrão é altamente conveniente para ambos. O apoio do que outrora se convencionou chamar de baixo clero pode garantir ao governo algum grau de efetividade para aprovar matérias no Congresso, afasta a imagem de governo disfuncional. Constrói uma base mínima para justificar sua existência.

A sensação de ingovernabilidade é, ao lado da impopularidade, da falta de perspectivas econômicas, da existência de um projeto de poder alternativo e da descoberta de um crime de responsabilidade, uma das condições necessárias para que se desencadeie um processo de impeachment. O presidente parece raciocinar que o quadro é mais favorável a um processo de impeachment do que à concretização de um autogolpe que lhe confira poderes ditatoriais. Entre a tutela e a ruptura, flerta com a tutela.

O Centrão foi uma salvaguarda poderosa para Temer concluir o mandato, e pode ser assim com Bolsonaro. Há muito sentido em se pensar assim. “Existe uma confluência de interesses. Bolsonaro quer blindar o próprio mandato e garantir o dos filhos, o senador Flávio e o deputado federal Eduardo. O Centrão quer garantir o caráter impositivo das emendas, o fundo partidário e eleitoral e participar do bilionário Orçamento de Guerra”, comenta um veterano observador da cena política de Brasília, o cientista político Antonio Augusto de Queiroz, diretor do Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar.

Com estas ferramentas na mão, o Centrão garante a eleição de seus protegidos na disputa municipal de 2020, que em algum momento ocorrerá. O fracasso da organização do Aliança pelo Brasil para se converter no partido bolsonarista este ano, nesse sentido, foi altamente conveniente.

Bolsonaro, em contrapartida, faz o jogo das nomeações, como bem demonstrou ontem com a escolha do novo diretor do DNOCS, que será funcional para a candidatura do deputado Arthur Lira (PP-AL) à presidência da Câmara.

Hoje a maior liderança do Centrão, Lira naturalmente tende a se credenciar como favoritíssimo para a vaga de Rodrigo Maia na presidência da Mesa Diretora, se o casamento entre Bolsonaro e Centrão fluir.

Uma Câmara presidida por Lira tende a ter momentos emocionantes.No crepúsculo de seu poder, Rodrigo Maia detém ainda a faculdade de desencadear um processo de impeachment, mas é pouco provável que o faça sem ter certeza absoluta da vitória. Conta com a confiança plena dos principais agentes econômicos do País, mas seu poder para influir na própria sucessão rapidamente se esvai na medida em que fica claro que o DEM deverá repetir em 2022 a aliança com o PSDB. E é altamente provável que o partido do presidente da Câmara fortaleça a candidatura presidencial de Doria.

Lira não tem compromisso com projetos presidenciais atuais ou futuros. Ele assume acordos táticos, é um operador do curto prazo, daqueles que cobram de maneira incisiva faturas não pagas. Seus interesses coincidem com os do Planalto, mas a relação tem tudo para ser atribulada.

Trabalha também a favor de Bolsonaro, ao menos no Congresso, a presença de Hamilton Mourão na vice-presidência da República. Mourão tem sido um exemplo de moderação na posição de vice, mas algumas perguntas persistem no Congresso: o vice-presidente seria capaz de recuar em situações-limite, como Bolsonaro faz? Em momento de grande pressão da opinião pública, o que Mourão faria?

As Forças Armadas estariam mais inclinadas a uma adesão cega a aventuras presidenciais, se o presidente fosse Mourão?
Bolsonaro finge ser o outsider que Mourão na realidade é, esta é a suspeita básica que existe entre parlamentares. Com uma pessoa como Arthur Lira na presidência da Câmara, este fator há de ser medido cuidadosamente.

Para uma aliança entre Bolsonaro e o Centrão prosperar, talvez tenha que haver um sacrifício supremo do presidente da República, uma concessão que beira o insuportável para ser feita, que é a demissão de Paulo Guedes.

O ministro da Economia é um empecilho nesta nova argamassa. Sua agenda de privatizações, rigor fiscal absoluto e Estado mínimo não é compatível com o modelo de governo que o Centrão necessita para se aliar. Se Guedes não abrir mão da agenda de ajuste, subirá a pressão para que ele seja atropelado no processo, acredita Queiroz.

Um sinal eloquente disso foi a aprovação, pela Câmara e pelo Senado, da brecha para reajustes salariais de diversas categorias do funcionalismo. O aviso de Bolsonaro, ao lado de Guedes, de que vetará o dispositivo, mostra que o presidente, por ora, não está disposto a soltar a mão de seu ministro da Economia.

A alegada inadequação da agenda de Guedes às necessidades do mundo real não comove a cúpula da indústria, que ontem estava lado a lado com o governo federal para pressionar o Supremo a colocar em segundo plano a preservação de vidas na pandemia.

A pressão sobre o Supremo por enquanto parece ser apenas um gesto retórico. Ao sugerir que o governo federal crie um comitê de crises para coordenar soluções com as partes envolvidas na pandemia, o presidente do STF deixou claro que o problema não era com ele. Devolveu a bola ao campo adversário. As matilhas que seguem fanaticamente o presidente já estão convocando manifestações antidemocráticas para este fim de semana. Este jogo está em andamento.

O mais importante no gesto de ontem é que lá estavam o grande capital, os ministros militares e o presidente, todos prestigiando Guedes. A questão é por quanto tempo o presidente conseguirá sustentar o fogo para preservar o perímetro de segurança em torno do ministro. O presidente pode ter que fazer uma escolha amarga.

*César Felício é editor de Política.

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