À medida que o governo Bolsonaro vai se aproximando das
cordas, mais ele acena ao bolsonarismo (fenômeno social, cultural e político
maior, muito maior, do que o próprio governo) e à sua agenda abertamente hostil
ao Estado democrático de direito. No momento a melhor chave interpretativa do
bolsonarismo é lê-lo como uma religião fake que atua por mimetismo de símbolos,
conceitos e narrativas do cristianismo. Ou ainda, trocando em miúdos, o
bolsonarismo é o parasita, o cristianismo (o cristianismo evangélico,
especificamente) é o seu hospedeiro.
O bolsonarismo é, portanto, aquilo que alguns chamariam de
uma religião gnóstica. O tempo todo estamos diante de um cristianismo encenado:
há, por exemplo, um mártir (retratado à perfeição no episódio lá da facada) e
há, o tempo todo, a acusação de apostasia — isto é, aos que abandonam a fé
bolsonarista recai, invariavelmente no mesmo fôlego, a acusação de traição.
É por isso, por exemplo, que o rompimento do ex-ministro da
Justiça Sergio Moro pode paradoxalmente enfraquecer o governo mas, ainda assim,
energizar a base mais aguerrida, a militância mais intransigente: o gado, em
resumo. E assim o é porque ele sublinharia essa narrativa tortinha, esse
cristianismo encenado no qual a coletiva de Moro anunciando a sua saída, para
não falar do seu depoimento à Polícia Federal, equivaleria ao beijo de Judas
dado em você sabe quem. Na narrativa original dos evangelhos canônicos: trinta
moedas de prata. Na narrativa gnóstica bolsonarista: a vaga da cadeira
presidencial na próxima disputa eleitoral.
É interessante que um livro de 1965, “The Revolution of the
Saints: A Study in the Origins of Radical Politics”, do Michael Walzer, seja
tão preciso, do ponto de vista histórico e filosófico, na descrição e no
enquadramento conceitual do que é o fenômeno bolsonarista. O bolsonarismo é
antes de tudo um argumento radical. Ele é o avesso do que a filosofia política
e a teoria política chamam de “conservadorismo”. E é justamente a partir desse
diapasão que ele deve ser compreendido.
Em seu livro Walzer descreve a emergência do Puritanismo
como “uma resposta política radical à desordem”. Em sua leitura, o Calvinismo é
tratado como “a primeira expressão moderna da tentativa de se transformar, a
partir de uma base ideológica, a ordem moral e política existente”.
Não era incomum, nos séculos XV e XVI, observarmos
magistrados e reis, amparados por justificativas teológicas, usarem o recurso à
violência contra hereges. Ainda assim havia a teoria cristã da “guerra justa”:
uma forma de limitar os danos e a violência envolvida, bem como de conferir algum
critério de civilidade e racionalidade possível em um contexto de guerra.
Segundo essa doutrina, uma guerra apenas seria justa quando
e se satisfizesse pelo menos três critérios: 1) fosse uma guerra defensiva; 2)
fosse lutada sob o comando de uma autoridade legítima e 3) fosse conduzida de
modo minimamente ordeiro e contido (“sem pilhagens, estupros e mortes
desnecessárias”).
Não demoraria até que essa doutrina, basicamente uma
doutrina de política externa, obtivesse ramificações no âmbito doméstico. Isto é,
ao descrever as condições necessárias para uma guerra civil ela descrevia
igualmente “as circunstâncias nas quais os comandos dos reis poderiam ser
legitimamente resistidos”.
A tirania de um monarca diante de seu povo deveria ser
interpretada então como um ato de agressão à ordem moral e legal estabelecida.
Logo quaisquer atos de agressão deveriam ser lidos como “um ato injustificado
de uma guerra ofensiva”. A resistência, por sua vez, deveria ser tratada como
uma guerra defensiva a ser travada, e portanto “justa”. Pensar, por exemplo, na
perseguição de Luís XIV aos Huguenotes na França.
É aí inclusive que ocorre o pulo do gato. Magistrados e
aristocratas calvinistas franceses buscaram legitimar suas insurgências
religiosas com base na doutrina medieval da guerra justa. No entanto, tal qual
estava codificada até então, uma guerra seria justa apenas se fosse lutada para
se preservar a própria vida, a propriedade ou a ordem legal. Os teóricos
medievais da guerra justa jamais reconheceram a religião como uma causa
suficiente e razoável de legitimação de uma guerra.
Outro ponto importante, os Puritanos usavam com frequência a
ideia de “guerra” como metáfora. Esse uso obedecia a dois critérios principais:
o primeiro cosmológico, e o segundo humano. Com relação ao primeiro, os
escritores Puritanos identificavam tanto o Jeová do Antigo Testamento quanto o
Cristo misericordioso como “um homem da guerra”, como “um capitão” — ver Thomas
Adams, por exemplo. Os anjos seriam um exército, segundo essa literatura.
Além disso, e isso é muito importante, essa batalha jamais
teria um fim. Com relação ao segundo ponto, de acordo com a literatura
Puritana, se Deus era um Deus da guerra, ele havia feito o homem à sua imagem e
semelhança. Como diria um famoso calvinista da época: “Acima de todas as
criaturas, Deus ama os soldados”.
Para adoutrina medieval da guerra justa, apenas o rei
possuía o direito de declarar guerra. Os Puritanos, todavia, radicalizariam a
doutrina ao afirmar que “A guerra contra Satanás é importante demais para que
seja deixada para o rei”. Eles jamais adotariam o entendimento católico de que
a guerra é um assunto laico, “derivada da natureza corrompida do homem, uma
resposta de curta duração a fim de lidar com violações circunstanciais da paz e
da ordem”.
Para os Puritanos, Deus é absoluto e o comprometimento
absoluto aos seus desígnios confere aos que creem privilégios extralegais. O
efeito principal do Puritanismo foi o de tornar a revolução um recurso
disponível à imaginação inglesa como nunca antes na história daquela sociedade.
A ideia de “guerra permanente” é o mito central do radicalismo Puritano.
Além disso, é importante lembrar que durante a Idade Média
jamais houve a prática cristã de classificar o inimigo como “o anticristo” —
esse foi mais um recurso retórico surgido na Modernidade, inaugurado pela
linguagem revolucionária radical calvinista. O léxico religioso/de guerra
calvinista se pautava basicamente por duas coisas:um antagonismo ao mundo
tradicional e um medo constante de um estado de anarquia social. Isto é,
bolsonarismo in a nutshell.
Na Inglaterra daquela época, o Puritanismo foi uma tentativa
de atribuir sentido, bem como de obter algum controle, sobre um mundo que
estava atravessando rápidas mudanças sociais. Algo análogo à função ideológica
desempenhada pelo bolsonarismo nos partisans mais radicais. O bolsonarismo, tal
qual o Puritanismo no interstício de 1530 e 1660, não é uma ideologia
conservadora, mas revolucionária.
Michael Walzer argumenta sobre os Puritanos: “eles se
tornaram aquilo que os ideólogos da nostalgia jamais conseguiram ser: inimigos
ativos da antiga ordem”. Algo análogo pode ser afirmado sobre o bolsonarismo:
ele ocupou um lugar que jamais havia sido ocupado pelos conservadores
tradicionais da paisagem política brasileira: o de “inimigo ativo da antiga
ordem”. É claro que essa afirmação pode ser problematizada. Mas somente o fato
de que o bolsonarismo tenha conseguido comunicar essa mensagem de modo
plausível já é digno de nota, repare.
Ainda segundo Walzer: os Puritanos eram menos o produto de
uma nova ordem que nascia lentamente no interior da antiga sociedade feudal,
como explicava a teoria marxista, e mais “um produto da desordem”. Da mesma
forma o processo de impeachment em 2016 precipitou um cenário de anomia
institucional favorável à emergência do bolsonarismo, como movimento político,
cultural e de cores religiosas.
Leio em reportagem recente da BBC Brasil que a
Procuradoria-Geral da República está investigando a formação de grupos paramilitares
bolsonaristas. O tal “300 do Brasil” é o caso mais emblemático. Em redes
sociais como o Twitter já há um bom tempo que bolsonaristas usam o neologismo
“ucranizar”, se referindo ao Brasil, como espécie de code word de chamado a uma
ação violenta nas ruas.
Para uma fração do bolsonarismo, raramente mapeada e
analisada pela grande imprensa e pela análise acadêmica respeitável, o credo
bolsonarista é essa mistura insólita de religiosidade born again, santimônia,
desobediência civil e culto à morte.
Para essa gente o ethos bolsonarista, é um ethos puritano radical e inequivocamente revolucionário: uma vez que você o abraça ou, melhor dizendo, uma vez que você se torna um fiel, a História passa a ter sentido e uma inteligibilidade própria. A emergência recente de grupos paramilitares não é acidental, mas um desdobramento ideológico razoavelmente previsível de um credo baseado em violência e radicalismo. A tendência, não se enganem, é piorar.
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