Jair Bolsonaro exibe notórios traços autoritários já desde
antes de sua eleição. Elogia o regime instaurado em 1964 e a tortura, atua
contra os direitos cidadãos e, sobretudo, zomba dos direitos humanos. Tais
marcas são visíveis para todos, impossível ignorar discursos e gestos,
incluindo as mãos prontas para acionar armas.
O projeto de poder que o conduz é simplório e demagógico,
mas contém em seu bojo séculos de pensamento contrário à democracia, ao
liberalismo, à modernidade. Mas somente no exercício do cargo máximo da
República ele revela todo o ranço reacionário e liberticida que move o seu
ânimo.
Em ato de que foi cúmplice, o presidente deu ultimato aos
demais Poderes: ou seguem o seu ditado ou aceitam o peso das Forças Armadas,
que o apoiam. Tal ameaça piora quando diz que a Constituição será obedecida e,
notemos, ele é a Constituição. Com a frase Bolsonaro retoma as teses
teológico-políticas do século 17 inglês, em especial as de Tiago I. Para aquele
monarca, rex est lex (o rei é a lei). Desde aquele tempo ocorre a luta entre
juízes independentes, Parlamentos e governos despóticos (B. Bourdin:
Theological-Political Origins of the Modern State). Em cada lance histórico um
deles obtém hegemonia sobre os demais. Em cada novo movimento de controle
estatal surge um regime político diferente.
O programa de Montesquieu – por ele encontrado no diálogo As
Leis, de Platão – sobre a harmonia política é um modelo a ser perseguido, nunca
foi realizado. Quando a tese liberal democratiza o Estado, o puro modelo se
aproxima dos fatos. Mas se a crise de poder deixa as instituições acéfalas, o
Judiciário se imiscui ou o Parlamento tudo decide.
O mais frequente é o Executivo praticar golpes de Estado
para impor os seus alvos. A crônica dos golpes marca os nomes de Napoleão e de
seu sobrinho, seguidos por muitos ditadores. Nos golpes os governantes se
livram das obrigações instauradas pela democracia liberal, sobretudo a
liberdade de imprensa e a responsabilização dos que ocupam cargos públicos.
Sem democracia o soberano não deve satisfações aos
Parlamentos, aos juízes, à cidadania. Tal costume foi combatido na Inglaterra
por Edward Coke (1552-1634). Ao admoestar o rei, que defendia seus privilégios
contra “os advogados”, Coke afirma que o soberano “não foi educado no
conhecimento das leis da Inglaterra”. Tiago I replica: se Coke tem razão, o rei
deveria estar sob a lei. A hipótese seria “traição evidente”. Tiago cita
Bracton: Rex non debet esse sub homine sed apud Deo et lege (o rei não deve
estar sob a lei humana, mas sob a lei divina).
Em 1616, Tiago adianta que “os reis são justamente chamados
deuses, pois exercem um modo de semelhança do Divino poder sobre a Terra.
Considerados os atributos de Deus, vemos o quanto eles concordam com a pessoa
de um rei. Deus tem poder de criar ou destruir, fazer ou desfazer ao seu
arbítrio, dar vida ou enviar a morte, a todos julgar e a ninguém prestar contas
(to be accountable). O mesmo poder possuem os reis. Eles fazem e desfazem de
seus súditos, têm poder de erguer e abaixar, de vida e morte, julgar acima de
todos os súditos em todos os casos e só devem prestar contas a Deus (yet
accountable to none but God)”.
Ainda em 1616 ele se dirige aos juízes da Star Chamber: “Não
usurpem a prerrogativa da Coroa. Se aparecer uma questão ligada à minha
prerrogativa ou mistério do Estado, trato que não lhes diz respeito, consultem
o rei ou o seu conselho, ou ambos; porque tais matérias são transcendentes. As
prerrogativas absolutas da Coroa não são assunto para a língua de um advogado
nem é legal disputar sobre elas”.
Coke foi preso na Torre de Londres por negar as referidas
prerrogativas. É inaceitável para o governante absolutista a norma que obriga
os dirigentes a prestar contas de seus atos.
O conceito de accountability, com origens na democracia
grega e retomado no Renascimento, liga-se diretamente à liberdade de imprensa.
Basta ler os escritos elaborados pelos puritanos (precursores dos que fizeram a
Revolução Norte-Americana), em especial os de John Milton, como a Areopagítica.
Vencedora em muitos momentos da História, a democracia liberal perdeu o
controle do Estado desde a contrarrevolução conservadora iniciada no século 19.
Ela persiste em ideários retrógrados que chegaram ao poder via pactos
demagógicos com setores religiosos inimigos da ciência. Tais líderes bisonhos
desejam, mas não possuem saberes para instalar uma ditadura. Iletrado, o
dirigente não governa e quer ditar. Recordemos o chiste de César contra os
sáfaros de Roma: Sylla nescivit literas, non potuit dictare – ou seja, Sylla
ignorava as letras, não podia ditar (Curtius, E.: A Literatura e a Idade Média
Latina).
Infelizmente devemos repetir hoje o dito de Coke: “Bolsonaro
não foi educado no conhecimento das leis brasileiras”. Quem identifica sua
pessoa com a Constituição repete de modo hilário Tiago I (um governante culto,
afinal). Mas um dia “o rei” deixará os palácios rumo à insignificância.
- Professor da Unicamp, é autor de ‘Razões de Estado e outros estados da razão’ (Perspectiva)
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