Bolsonaro e Mourão – Da pandemia ao pandemônio
O segundo Governo Dilma começou a desandar na largada,
quando sua titular se viu obrigada a nomear um Ministro da Fazenda que pensava
o contrário daquilo que havia defendido durante sua campanha (2014), um caso
de estelionato eleitoral tão notável como o confisco da
poupança por Collor (1990), que na campanha lançara tal acusação contra o rival
petista no segundo turno.
Tentando remediar o desastre de sua
incoerência/inconsistência, Dilma fez de tudo para manter as aparências, não só
praticando crimes orçamentários e fiscais para evitar descontinuidade de seus
programas sociais, como também abandonando à própria sorte o ministro que nomeara.
O resultado foi desgoverno e perda de apoio parlamentar (Centrão), que abriu as
portas para o processo de cassação.
Bolsonaro não só repete Dilma e Collor no estelionato
eleitoral, abandonando a luta anti-corrupção que ameaça
tragar seu clã pelas práticas tradicionais do baixo-clero
parlamentar (rachadinha) e os vínculos com o crime organizado
(milícias), como também no desgoverno, por sua omissão no
enfrentamento da COVID-19 e a desastrada tentativa de intervenção na PF – por
ora barrada pelas denúncias de Sérgio Moro e a pronta ação do Ministro
Alexandre de Moraes, do STF –, que marca a retomada de seus laços de
sangue com o Centrão.
A incapacidade presidencial em construir uma coalizão
governamental de centro-direita, que lhe desse base mínima de apoio político e
parlamentar, já se delineara desde as demissões dos ministros Bebianno e Santos
Cruz, em 2019, ganhando nova dimensão com a demissão de Mandetta e a renúncia
de Moro, este último desnudando o deslocamento do eixo de ação do Governo
do programa para o projeto de poder – outro
aspecto do estelionato eleitoral –, não obstante a retórica do cerco político
(programático). As dificuldades político-programáticas são reais, mas não se
pode conceber o Centrão como um remédio para isto.
De outro lado, há claros sinais da insuficiência do programa
ultra-liberal de Guedes, abraçado por Bolsonaro, a partir da
constatação da tíbia recuperação econômica pré-pandemia. De lá para cá, a
generalização do medo em relação ao vírus e os decretos do fim do
mundo, adotados na esteira da omissão presidencial, instauraram a
certeza de uma profunda recessão, agravado pela percepção do colapso da
economia mundial, vale dizer, entre outras coisas, da cessação dos fluxos
financeiros internacionais que alimentam a (dependência da) periferia
capitalista.
A mudança radical de conjuntura fez Bolsonaro voltar a
cogitar o programa econômico nacionalista que, outrora, permitira aos militares
forjar o “milagre brasileiro” à partir do compromisso entre o
desenvolvimentismo em si (sem desenvolvimentistas) e o
liberalismo em si (mercado) – que nada tem a ver com o
liberalismo para si (político). Assim, Guedes se vê em situação
próxima à de Moro – cuja intransigência liberal-republicana limitou as
possibilidades de transação –, podendo ser o próximo a ter que ceder os dedos –
para um nacionalismo que se supunha morto – para não perder os anéis da
influência privada interna no Estado.
Enquanto o Governo, expurgado de suas ortodoxias (liberais
e republicanas) de campanha, se insinua ao centrão político, em busca mais
de blindagem do que de governabilidade – como
fizera o regime militar ao criar a ARENA e o MDB –, a velha política vê nisto a
possibilidade de uma dupla blindagem: em relação aos aparatos
jurídico-repressivos do Estado, via controle do MP, PF, etc., e à sociedade,
por meio do anteparo bolso-cristão.
Bolsonaro, além de ter coragem política – o que o povo
aprecia, pois foi o único, depois do Petrolão, que soube utilizar o capital
político amealhado pelos lavajatistas para atacar a velha
política, nela englobando a degeneração tucano-petista –, demonstra
ter capacidade tática (readaptação) além de ter tomado gosto pelo poder,
elementos essenciais ao jogo político-estatal.
O problema aqui é que sua personalidade farisaica e sua
história terrorista (vide “#ELE
NÃO” ou “#ELES NÃO”?) parecem indicar altos níveis de desarranjo político
associado à baixos níveis de solução de problemas, o que torna crítica a
questão de saber até que ponto ele terá condições de tocar seu novo
Governo, com o apoio das FFAA, dos liberais encabrestados, do
bolso-cristianismo e do Centrão, em meio a tantos estelionatos acumulados, aos
escândalos por desabrochar e sua flagrante inapetência para a gestão.
Até aqui, o Presidente conseguiu arrefecer a perda de
credibilidade nos extratos médios e altos da sociedade com apelos ao retorno do
comércio e a distribuição de dinheiro (corona-voucher) às camadas
populares, mas tudo isso tem prazo de validade e daqui a poucos meses estará
ele diante de um quadro bastante adverso, com a população muito atingida pela
epidemia, o desemprego ainda mais alto, a recessão estabelecida e um forte
descrédito político geral. Quando esta situação se instalar, difícil crer que
o impeachment não se tornará inevitável.
É aqui que voltamos a observar a movimentação do Vice Hamilton
Mourão; não se sabe, exatamente, se no centro do gramado, onde Bolsonaro atua
como dono da bola, ou à sua margem, com visão nova/própria de jogo
e vontade de entrar em campo, como se viu, afoitamente, no início do governo.
Em artigo recente no Estadão[i],
Mourão apontou a anomalia institucional como um problema que está “levando o
País ao caos”, podendo se tornar uma questão “de segurança”, o que
classicamente justificaria uma intervenção militar – no caso, um autogolpe.
Para ele, a causa principal desta anomalia residiria na “polarização que tomou
conta de nossa sociedade” e que é revigorada por decisões judiciais e
coberturas jornalísticas “sempre pelo mesmo viés”, o que nos lembra o
pensamento de seu desafeto Olavo de Carvalho em relação à guerra contra o
comunismo (vide Democracia,
Idiotia e Facciosismo), mas também a crítica de Oliveira Vianna[ii] ao
liberalismo do início do séc. XX, cuja inviabilidade, para o autor, estaria
centrada no “conflito patente entre (…a) cultura das elites metropolitanas
(idealismo constitucional) e a cultura política da (…) enorme massa (…), que é
quase toda a nação”.
Não obstante seu firme posicionamento à direita, Mourão, ao
contrário de Bolsonaro, defende “sentar à mesa, conversar e debater” como forma
de impedir a continuidade da deterioração do “ambiente de convivência e
tolerância que deve vigorar numa democracia”, uma postura totalmente contrária
ao do titular do Governo, que não cansa de semear o pandemônio – uma de suas
predileções políticas desde a juventude.
Mesmo sua crítica à ”degradação do conhecimento político por
quem deveria usá-lo de maneira responsável”, que deixa de lado o próprio
titular do Governo, principal promotor de balbúrdias da República neste
momento, precisa ser vista diante da impossibilidade de fazer de outro modo,
sob pena de atentar contra a própria compostura do cargo que exerce
(Vice-Presidência), entre outras questões.
O fato é que Mourão, mesmo citando a “profusão de decisões
de presidentes de outros Poderes, de juízes de todas as instâncias e de
procuradores, que (…) intentam” exercer a função Executiva para o qual não
foram eleitos, o que não faz jus a seu conhecimento de filosofia política
moderna – deixando de lado Montesquieu –, afirma querer deter a marcha batida
do enfrentamento, apostando haver ainda “tempo para reverter o desastre”:
“basta que se respeitem os limites e as responsabilidades das autoridades
legalmente constituídas”, o que só pode ser obtido pelo afastamento do
Presidente da República do cargo – inclusive a tempo de impedí-lo de lançar-se
em aventura putschista.
Pode parecer pouco, mas diante do que temos – um Presidente
que goza de forte prestígio nas franjas subalternas das FFAA e nos aparatos
policiais, sobretudo estaduais, e uma militância fanática que o apoia e se
mostra crescentemente inclinada à ação prática –, não é de se desprezar,
sobretudo quando as instituições democráticas se mostram divididas e
vacilantes, eivadas de (falsas) lideranças com vistosos rabos-presos e
dispostas a tudo para mantê-los intactos.
Mourão demonstrou vontade de pacificar o país quando fez
gestos, logo no início do Governo, em direção ao espectro político-ideológico
opositor – gestos que foram abortados por pressão do bolsonarismo –, o que
ainda hoje parece refletir a visão majoritária das FFAA sobre o papel dos
governos.
Neste momento, quando tudo parece ter se turvado diante da
flagrante cooptação militar promovida por Bolsonaro, é mais importante do que
nunca apoiar as lideranças militares que, seguindo a filosofia do General Villas-Bôas, não
apostam na força como substituta da vontade social, mas tão somente
como desobstruidora do caminho por onde ela quer fluir. O bolsonarismo,
definitivamente, não parece representar este caminho.
Hamilton Garcia de Lima (Cientista Político,
UENF/DR[iii])
[i] Limites
e responsabilidades, in. <www.gov.br/planalto/pt-br/conheca-a-vice-presidencia/discursos-pronunciamentos-artigos/limites-e-responsabilidades>
em 18/05/20.
[ii] Instituições
Políticas Brasileiras (vol. 1), ed. Itatiaia-USP-UFF/BH-SP-Niterói,
1987, p. 20.
[iii] Universidade Estadual do Norte-Fluminense/Darcy Ribeiro.
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