Não bastassem os desafios trazidos pela pandemia e a
recessão decorrente da parada súbita da vida econômica, o governo viveu desde
meados do mês passado uma sucessão de eventos que resultaram num ponto de
inflexão da atual gestão que, a meu ver, é irreversível.
No dia 16 de abril, o então ministro da Saúde, Mandetta, foi
dispensado do cargo. Seu trabalho de enfrentamento do coronavírus estava sendo
muito importante para o País, embora não fosse isento de críticas, como a pouca
atenção dada à testagem em larga escala. Em consequência, sua popularidade
subiu e começou a fazer sombra ao presidente, que com isso não conseguiu
conviver. Aparentemente, o que dá certo não pode ser mantido. Seu sucessor está
totalmente perdido.
No dia 22 de abril, o chefe da Casa Civil anunciou um plano
de investimentos (Pró-Brasil) destinado a promover a volta do crescimento
econômico a partir de obras de infraestrutura. Projetos de investimento público
direto e concessões ao setor privado seriam elencados, sem uma articulação
entre eles.
O anúncio, primariamente destinado a injetar ânimo na
plateia, não encantou ninguém por um robusto conjunto de razões:
– O plano lembra duas tentativas semelhantes que acabaram
por resultar em períodos muito ruins: o II PND e a década perdida dos anos 80;
e o PAC do PT e a grande recessão de 2014/2016.
– A comparação com o Plano Marshall peca, naturalmente, pela
notável ausência do Tesouro americano.
– O plano não menciona como o capital externo, ora em fuga
do País, voltaria a fluir em grandes proporções.
– O plano não menciona como seria financiado: com novos
impostos? Com emissões? Estourando o teto de gastos? Isso num momento em que as
despesas necessárias para enfrentar a pandemia resultarão numa piora
substancial de nossa posição fiscal. Mais ainda, passada a emergência, caberá
uma correção nas prioridades de gasto, incluindo a saúde. Mais uma razão para
que não abracemos um rumo que já se mostrou fracassado mais de uma vez.
– Finalmente, o plano foi desenvolvido e anunciado sem a
participação do Ministério da Economia, que, claramente sinalizou sua
contrariedade.
Não é, pois, de se estranhar que os mercados tenham reagido
mal, com desvalorização cambial e alta nas taxas de juros, pois foi colocado em
dúvida o compromisso com a adequada gestão das contas públicas passado o
período da emergência.
A recente entrevista conjunta dos ministros da Casa Civil e
da Economia não teve o poder de tranquilizar ninguém. Vem aí mais tumulto.
Após a demissão de Moro, fica consolidada uma constatação.
Bolsonaro tem três características importantes: limitada capacidade de
percepção da realidade, é profundamente autoritário e é bastante descontrolado.
Os eventos acima descritos e as negociações recentes com o
chamado Centrão mostram que o presidente apertou o botão emergência e deu uma
guinada no seu governo, buscando blindar sua família e sua posição no
Congresso.
Se as coisas parassem por aqui já não estaríamos bem.
Entretanto, nos próximos meses a situação da pandemia, das pessoas e das
empresas ainda irá piorar substancialmente.
Caminhamos rapidamente para ser o segundo país do mundo com
maior número diário de óbitos, atrás dos Estados Unidos. A dificuldade de
manter as quarentenas deverá empurrar o pico da doença para o final do
semestre.
O salto do desemprego deverá ser atingido no terceiro
trimestre, quando os esquemas temporários de suporte começam a vencer. Da mesma
forma, a pressão financeira sobre as empresas vai se elevar, levando muitas
delas a insolvência e a pedidos de recuperação judicial.
Por tudo, acredito que haverá uma convergência negativa por
volta de agosto/setembro, pressionando para piorar a situação política. O que
ocorrerá a partir daí é incerto, mas não tenho dúvida que o governo Bolsonaro
caminhará para bater no muro. A questão é apenas quanto tempo vai levar para
isso.
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