A Constituição diz que todos são iguais perante a lei e,
assim, devem responder por seus atos, com exceção dos inimputáveis, que ela
mesma trata de apontar. Os inimputáveis são considerados assim porque, no
momento em que cometem alguma infração, são incapazes de discernir a gravidade
de seus atos.
Jair Bolsonaro, desde o início de 2020, age como alguém que
pretende alcançar a inimputabilidade. Alheio à forma como coloca em risco a
saúde pública, num momento, e afronta as instituições democráticas, no
seguinte, apela a uma narrativa em que se esquiva de responsabilidade pelos
seus atos, aponta inimigos imaginários a justificar as próprias arbitrariedades
e pede ao povo, o mesmo que coloca em risco, uma blindagem para as contenções
de suas atitudes previstas na Constituição, e exercidas pelos demais Poderes,
pela imprensa, pelo Ministério Público e pela sociedade civil organizada.
É o “e daí”, não por acaso uma das expressões mais repetidas
pelo capitão, elevado à condição de política de Estado. Resta saber se esses
mesmos agentes sobre os quais recai a missão de conter o presidente vão dar de
ombros à pergunta cínica ou vão responder a Bolsonaro que “e daí o senhor não
pode agir como está agindo”.
Neste sábado, pela enésima vez desde o início da pandemia do
novo coronavírus e depois de o Brasil cruzar a marca de 6.000 mortos pela
covid-19, o presidente da República que se quer inimputável promoveu
aglomeração de pobres e idosos num entorno desfavorecido de Brasília. Demonstra
num só ato sua absoluta ausência de empatia com os mais vulneráveis, sua
completa incapacidade para gerir o País numa emergência de saúde e sua covardia
política, pois só foi dar o novo rolê da morte porque queria chamar a atenção
da imprensa e dos poucos fanáticos que continuam a apoiá-lo e desviá-la do
temível depoimento que Sérgio Moro daria em seguida no inquérito que investiga
se o presidente tentou aparelhar politicamente a Polícia Federal para blindar
apoiadores e filhos.
Ao agir como um inimputável sem sê-lo, o presidente dá uma
banana para as instituições e para seus governados. Dobra a aposta na crença de
que ninguém fará nada contra ele e mostra que, para ele, a vida é algo banal,
que pode ser mercadejada na bacia das almas da tentativa de salvação política.
Afinal, se mais pessoas morrerem, não se poderá jogar “no
seu colo” a responsabilidade, pois, afinal, o STF deu aos governadores
prerrogativa de determinar as regras de distanciamento social. Ignora – e
acredita que a opinião pública fará o mesmo, pois a subestima, medindo-a pela
régua da própria mediocridade – que é justamente o boicote que promove
diuturnamente ao necessário isolamento que o torna poroso, insuficiente, e
agrava o quadro de saúde Brasil afora.
Não adianta arrotar orgulhosamente a própria
inimputabilidade, presidente. O Supremo, a imprensa, o Congresso e a sociedade
existem e vão cobrar do senhor, que foi eleito democraticamente, embora
escarneça até da própria vitória, colocando-a irresponsavelmente e sem provas
em dúvida, para governar o Brasil segundo os preceitos constitucionais.
Não adiantará tentar redefinir o princípio da
impessoalidade, dizendo que amigo não está enquadrado nele, como fez em mais um
pronunciamento sem pé nem cabeça.
Os mortos que se somam em progressão geométrica são a
demonstração corpórea, inescapável, de que o “e daí” elevado à condição de
política de Estado é, sim, razão para que o presidente seja confrontado com os
limites institucionais. Que o Supremo se mantenha firme no caminho – que tem
demonstrado que está consciente de ser o seu dever – de mostrar ao pretenso
inimputável que ele não o é.
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