‘Foi o derradeiro comando, o mais essencial”, escreveu
George Orwell no clássico distópico “1984”, referindo-se à ordem da fictícia
Oceania para que seus súditos rejeitassem tudo o que os olhos vissem e os
ouvidos escutassem à margem da linha oficial. Donald Trump volta e meia adapta
a citação quando aponta para o inimigo que adoraria domesticar: a imprensa
independente. “Lembrem-se, o que vocês estão vendo e o que vocês estão lendo
não é o que está acontecendo”, avisa sempre. No Brasil de Jair Bolsonaro o que
se vê, ouve ou lê é bastante parecido com o que acontece intestinamente no
governo manicomial eleito em 2018. Um assombro diário. E é o jornalismo
arretado, investigativo, que nos permite ver e escutar. Já a tarefa de pensar
fica a cargo de cada um.
Basta misturar alguns fatos da semana para constatar que
eles mereceriam manter rigoroso distanciamento entre si. No Brasil que beira 15
mil mortes de Covid-19, o participante de uma reunião virtual de empresários
com o chefe da nação se esqueceu de desativar a função “vídeo” e apareceu meio
peladão na tela tornada pública. Debatiam-se os rumos da economia nacional. O
país ultrapassa a barreira de 200 mil casos confirmados do vírus, o SUS pede
socorro, erguem-se hospitais de campanha desossados e fraudados, aos moribundos
resta esperar morrer fora da curva. Cinco meses após o primeiro caso da doença
na China, Bolsonaro ainda se atrapalha com o uso de máscara e mistura “lockout”
e “blecaute” com “lockdown” — talvez por horror ao real significado do termo.
Mas trocou de ministro da Saúde pela segunda vez em um mês,
e comanda o país de 211 milhões de almas sem diretriz clara de enfrentamento da
crise tríplice sanitária, política e econômica. A execução do pagamento do
auxílio emergencial de R$ 600 virou cipoal de armadilhas para os mais
necessitados, e a realização do próximo Enem também promete ser. Jair
Bolsonaro, pseudônimo Airton, Rafael ou Paciente 05 nos testes negativos de
Covid-19 que apresentou dias atrás, libera academias de ginástica, salões de
beleza e barbearias como sendo serviços essenciais. Não fosse tudo tão sério, o
conjunto daria um roteiro e tanto para o diretor Cacá Diegues filmar um “Bye
Bye Brasil 2020”.
Se em tempos excepcionais é desejável que o mundo tenha
líderes de qualidades adequadas, em tempos de crise pandêmica é mais crucial
ainda. É quando a diferença entre exercer ou não uma liderança sólida vai
definir o cociente de vidas salvas ou mortes desnecessárias. Estatísticos e
formuladores de métricas da Covid-19 poderiam trabalhar com uma variável
hipotética: e se Jair Bolsonaro fizesse uma live proclamando que doravante,
para o bem da amada pátria e em nome de Deus, todos deveriam aderir ao
distanciamento social — se necessário até mesmo a um isolamento temporário?
Considerando-se a fidelidade já demonstrada pelos milhões de apoiadores do
presidente-mito, é provável que uma boa parcela o seguiria de casa e bíblia na
mão.
Nessa hipótese, como seria a mudança de comportamento da
curva do vírus no Brasil? O índice de contaminação diminuiria para quanto? E a
mortandade? Poderíamos regredir quantas casas no sombrio ranking global? Dá
para calcular o efeito de mais leitos de CTI e respiradores com tempo de se
tornarem operacionais. Talvez deixássemos de ser o país-pária da atualidade, e
fronteiras se entreabririam para o Brasil quando o mundo retomasse sua rotina.
A gritante subnotificação de óbitos e contaminados do país teria mais chances
de ser computada e aperfeiçoar as políticas sanitárias?
O exercício de métrica serve apenas para jogar o foco no
tamanho da (ir)responsabilidade do ocupante do cargo.
Liderança é uma questão de fatos, não de opinião, e nem todo
chefe de nação nasce estadista. As dificuldades se agravam quando o governante
tem consciência íntima de estar aquém do exigido para conduzir um país em
crise. No caso da Covid-19, deve ser irreprimível a tentação de acenar com a
falsa promessa de uma vacina iminente ou uma droga capaz de inverter o quadro.
A aposta presidencial no uso da cloroquina deve ter essa raiz.
Já disponível para outras enfermidades como malária mas
ainda não liberada para tratar o coronavírus em sua fase inicial, a poção
mágica abraçada por Bolsonaro torna-se, agora, política oficial para pacientes
do SUS. Os dois ministros da Saúde defenestrados, ambos médicos, se opunham à
medida devido a seus possíveis efeitos colaterais. “Votaram em mim para eu
decidir e esta questão passa por mim”, decidiu o presidente.
Nos Estados Unidos, onde o número de óbitos se aproxima dos 100 mil, o Instituto de Alergias e Doenças Infecciosas deu início a um teste clínico da droga em 2.000 adultos. Até a conclusão do estudo, nem Donald Trump, outro fervoroso adepto da droga, terá vez. O terceiro promotor ativo da cloroquina é o venezuelano Nicolás Maduro, formando um improvável eixo de líderes errados para tempos de pandemia.
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