“Perigo de dano irreparável ou de difícil reparação”. Diante
disso, a liminar foi concedida no meio da pandemia, realocando milhões de reais
do orçamento da Seguridade Social. Mais dinheiro para a Saúde comprar
respiradores? Não, tampouco para a Assistência pagar o auxílio emergencial. Ao
contrário, a decisão diminui o dinheiro disponível para as duas áreas. O juiz
federal decidiu que os juízes federais não precisam pagar as novas alíquotas
progressivas da reforma da Previdência.
Confisco foi a razão para considerar inconstitucional trecho
da Emenda Constitucional discutida pelos constituintes ao longo do ano passado.
O tema espera julgamento no STF. A liminar do juiz dada neste mês no processo
1009622-08.2020.4.01.3400 é em favor da sua própria categoria – embora seja
verdade que o mesmo tratamento foi dado a outras categorias em outras ações.
O argumento é simples: como a alíquota progressiva exige
contribuições maiores de quem ganha mais, aqueles no teto remuneratório terão
uma alíquota efetiva de quase 17% para a Previdência. Somada ao imposto de
renda, a tributação total sobre o salário superaria 40%.
Há dois problemas no argumento. Um primeiro é comparar a
contribuição com o salário atual, e não com a renda a ser recebida: a
aposentadoria continuará sendo pelo último salário para quem ingressou antes de
2003. Independentemente do salário médio ao longo da vida e do valor das
contribuições, a aposentadoria é 100% do maior salário. O subsídio pode ser de
milhões de reais por pessoa. Não à toa, o regime dos servidores continuará
ostentado déficits financeiros bilionários anualmente e déficit atuarial da
ordem de trilhão (a Constituição demanda o equilíbrio, mas o texto é preterido
por um princípio na decisão judicial).
O retorno ao investimento é altíssimo: se produto semelhante
estivesse disponível no mercado, os demais cidadãos fariam os aportes felizes,
sem jamais pensar que estão sendo confiscados. A confusão existe porque a
contribuição previdenciária na prática é híbrida, ora parece aporte ora
tributo.
O MPF defendeu em 2018 a fixação de uma tese sensata:
aumentar a contribuição previdenciária do servidor seria constitucional, desde
que se apresentem estudos financeiros e atuariais mostrando a sua necessidade.
Não sendo o caso, haveria o tal confisco.
Um segundo problema no argumento do confisco é ignorar que
os trabalhadores do setor privado estão sujeitos a tributação muito maior,
inclusive para pagar os benefícios do setor público, sem que se fale em
confisco. Como mostrou Bernard Appy neste jornal na excelente coluna de
fevereiro “Quem paga imposto no Brasil?”, o produto do trabalho de um celetista
chega a ser tributado em mais de 60%. A conta considera não apenas a
contribuição previdenciária e o imposto de renda, como os tributos indiretos
federais e estaduais (ICMS, PIS-Cofins, IPI) sobre sua produção, que diminuem o
que ele levará para casa.
Parte desses tributos fecham o déficit de mais de R$ 40
bilhões por ano dos servidores. Não é este o verdadeiro confisco? Como a
previdência do funcionalismo integra a Seguridade Social, o buraco é custeado
por contribuições como a Cofins – competindo com Saúde e Assistência. E daí?
As ações sobre o tema no Supremo, hoje com relatoria do
ministro Barroso, eram no passado julgadas por Joaquim Barbosa, que expunha esse
argumento. Entendia que na ausência do aumento da contribuição do servidor, a
conta iria para os demais. Incluindo os filiados ao INSS, que teriam a
obrigação de custear os benefícios do regime sem o direito de usufruí-los:
“partilhar o déficit com as pessoas naturais e jurídicas privadas é injusto e
abusivo.” Mesmo com a elevação da reforma da Previdência, menos de 20% das
despesas são custeadas diretamente pelos servidores.
Os argumentos de servidores federais sobre confisco na
reforma da Previdência são embalados por duas indignações. Uma é a
subtributação da renda de profissionais liberais de alta renda pejotizados.
Serviços pagam menos impostos que produtos, e a PJ ainda pode-se distribuir
lucros e dividendos para a pessoa física sem pagar IR (E daí?). O juiz olha
para o advogado e se sente injustiçado.
A outra é a exclusão de Estados e Municípios da reforma (E
daí?). Juízes estaduais, que já ganham mais pela farra das verbas
indenizatórias, ficaram a princípio dispensados da alíquota progressiva da reforma.
A associação dos federais se mobilizou para não ter e pagá-la também.
Não será possível perenizar o auxílio emergencial e
instituir alguma renda básica melhor que o Bolsa Família depois da crise sem
combatermos nossos “e daís”. Consolidar a reforma da Previdência nos tribunais,
reformar a tributação sobre a renda e eliminar verbas indenizatórias devem
fazer parte da busca por recursos no pós-pandemia.
*Doutor em economia
Nenhum comentário:
Postar um comentário