A proposta do presidente Jair Bolsonaro de armar a
população, na radicalidade que ele defendeu na reunião, se posta em prática,
permitiria a formação de grupos armados, milícias, como há na Venezuela, e até
uma guerra civil. O mais impressionante era que os oficiais, inclusive um
integrante do Alto Comando, na ativa, estivessem vendo isso sem reagir. É
inconstitucional a proposta do presidente. O Estado tem o monopólio da força, e
ele é garantido pelas Forças Armadas. Bolsonaro quer que pessoas armadas saiam
de casa para desrespeitar leis e determinações das autoridades.
Um ministro do Supremo com quem eu conversei ontem considera
que essa é a parte mais relevante da reunião, não apenas por ser claramente
inconstitucional, mas porque já há precedentes:
— Tem aquele fato anterior de revogação das portarias que
permitiam a rastreabilidade de armas, balas e munições de uso exclusivo do
Exército. Eles substituíram inclusive o responsável pelas portarias. Se você
flexibiliza a rastreabilidade você beneficia os milicianos e grupos marginais.
Essa é uma questão que precisa ser olhada com atenção. Já há uma ação do PDT no
Supremo.
A Procuradoria-Geral da República (PGR) tinha que tomar
alguma providência, na opinião desse ministro.
Um general que eu ouvi acredita que as instituições
impedirão que o presidente execute esse seu projeto armamentista. Disse que o
presidente não tem o poder de armar a população, porque a legislação não
permite, e ele não teria o apoio necessário no Congresso para mudar a lei. O
militar acha que o Brasil não tem essa cultura, a não ser “grupos restritos e os
marginais”.
— Assim, quando ouço esses arroubos vejo apenas como uma
figura de retórica — disse o general, que tem posição de destaque no governo.
O presidente estava naquela reunião estimulando, na minha
opinião, um conflito armado dentro do país, a desobediência armada às ordens
das autoridades estaduais. Isso pode ser o começo de algo muito perigoso. Na
Venezuela, o coronel Hugo Chávez fez exatamente isso para se perpetuar no
poder. Armou grupos, os círculos bolivarianos, inicialmente com o argumento de defender
a “revolução” que ele dizia representar, depois outros grupos paramilitares
foram sendo formados. Hoje, há mais “soldados” nesse exército paralelo do que
no oficial. Por outro lado, o chavismo fez uma simbiose com as Forças Armadas,
militarizando o governo e dividindo o poder com os oficiais.
Em seguida, enfraqueceu as instituições, como Congresso e
Judiciário, e perseguiu a imprensa. O Brasil, no governo Bolsonaro, faz um
ensaio claro na mesma direção do chavismo que demoliu a Venezuela. Naquela reunião
do dia 22 de abril, o país redescobre, graças à decisão do ministro Celso de
Mello, do que é feito o governo. Lá se viu de tudo, desde ministros pedindo
prisões de autoridades, ameaças do presidente a quem falasse com a imprensa,
até o estímulo à reação armada contra a ordem das autoridades.
Isso causou espanto em integrantes de outros poderes, mas é
crescente a impressão de que o procurador-geral da República, Augusto Aras,
tentará arquivar o inquérito que investiga se houve tentativa de interferência
na Polícia Federal. Entre os meus interlocutores, tenho ouvido que o fato ficou
disperso entre as muitas falas do presidente. Um procurador do alto escalão do
MPF, no entanto, me disse ontem que é evidente que houve crime naquela reunião.
O ponto do ex-ministro Sergio Moro estaria provado naquela fala, recheada de
palavrões, em que ele diz que vai trocar sim “o pessoal da segurança nossa” no
Rio. Ninguém honestamente pode confundir com a segurança pessoal, pelo
contexto, e porque ele fala em proteger filhos e amigos. “Se não puder trocar,
troca o chefe dele. Não pode trocar o chefe dele? Troca o ministro e ponto
final.” E ele de fato trocou o diretor da PF no dia seguinte para mudar o
superintendente no Rio. Ponto final. Era isso que ele queria. Se Aras não
quiser ver, é porque não quer fazer seu papel institucional. Perguntei ao
procurador que eu ouvi que crime estaria caracterizado nessa fala. “Advocacia
administrativa, pelo menos.”
É diante deste fato que o país está: o presidente cometeu crime e faz ameaças à Constituição numa reunião ministerial. Ignorar isso é flertar com o abismo.
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