O Brasil supera a cada dia o grau de tensão da véspera.
Ontem, o dia já começou com a operação contra o governador do Rio, Wilson
Witzel, e todas as dúvidas que a cercaram. Depois de dias inteiramente
crispados, o país se viu logo de manhã entre dois fogos: é preciso investigar
qualquer suspeita de corrupção, principalmente no Rio, mas a Polícia Federal
não pode se transformar na polícia política de Jair Bolsonaro. O bolsonarismo
ajudou a espalhar a dúvida sobre a operação, com as declarações de Carla Zambelli
e as comemorações do próprio presidente.
No meio da confusão do dia, o discurso do presidente da
Câmara, Rodrigo Maia, pareceu um oásis. Era alguém lembrando que líderes
lideram e que as instituições têm papéis a cumprir nos momentos trágicos do
país. Maia começou fazendo o que Bolsonaro nunca fez, demonstrou sentimento em
relação aos que morreram, aos que não puderam cumprir o ritual do luto, aos que
se afligem com os seus nas UTIs, e aos profissionais da saúde que lutam na
frente de batalha, “verdadeiros heróis”.
Na véspera, em nota, o presidente Bolsonaro avisou que vai
continuar saindo para as aglomerações. “Sinto-me bem ao seu lado (do povo) e
jamais abrirei mão disso.” Bolsonaro tem uma visão reducionista do povo
brasileiro. Para ele, só contam os que se juntam em manifestações dominicais,
com suas faixas antidemocráticas, em grupos minguantes, é bom que se diga. Ou
os que se reúnem na claque do Alvorada.
No domingo, o presidente levou a tiracolo até o ministro da
Saúde, general Pazuello. O interino que ficará muito tempo. O Brasil passa a
ser aquele país em que o ministro da saúde descumpre as orientações da saúde
para satisfazer o chefe. No mesmo domingo, Bolsonaro fez uma ameaça velada ao
ministro Celso de Mello, postando uma mensagem de fácil decifração. E o
ministro da Defesa avalizou a nota do general Heleno, que ameaçara o Supremo de
“consequências imprevisíveis”.
Com o presidente tão ocupado com suas querelas, e os líderes
militares dando sinais trocados, o espaço de falar como estadista estava vago.
Na política, não existe espaço vazio. Foi esse que o deputado Rodrigo Maia
ocupou com seu discurso em que deu vários recados, inclusive um para dirimir o
falso dilema que opõe isolamento social e reativação da economia. “Quem derruba
a economia é o vírus.” Maia trouxe a figura icônica de Ulysses Guimarães,
sentado na cadeira que foi dele um dia, para lembrar solenemente o valor da
democracia. Essa que temos e conquistamos. “Senhoras e senhores ministros do
STF sabem que esse parlamento respeita e cumpre as decisões judiciais, mesmo
quando delas discorda.” Na véspera, Bolsonaro, em nota, dissera que era preciso
atuar “para termos uma verdadeira independência e harmonia entre as
instituições da República”. O presidente acha que o Judiciário tem invadido suas
prerrogativas, e seus ministros mais poderosos, militares ou não, concordam com
ele.
Na segunda-feira, Bolsonaro criou um constrangimento
institucional — mais um — quando desembarcou na Procuradoria-Geral da República
(PGR). O investigado querendo confraternizar com o investigador. E num momento
em que o país tem muita dúvida sobre a autonomia do PGR.
O que se investiga é a suspeita de intervenção na Polícia
Federal. Ele disse na reunião que iria interferir, demitiu o diretor-geral,
trocou o superintendente do Rio. Sua deputada de estimação, Carla Zambelli, deu
uma entrevista em que revelou: “alguns governadores estão sendo investigados.”
O presidente já declarou guerra aos governadores em geral, aos do Rio e de São
Paulo em particular. Por tudo isso, um manto de dúvida inicial cercou a
operação contra o governador Witzel.
Todo indício de corrupção tem que ser investigado, atinja quem atingir. O Rio é um estado politraumatizado. Já viu de tudo e não quer a repetição de um roteiro trágico bem conhecido, ainda mais no meio de uma pandemia. É preciso ser implacável com quem tramou contra os cofres públicos neste momento. Contudo, o temor que cercou a operação de ontem aumentou ainda mais a certeza de que a PF tem que ser autônoma. Exatamente para que não paire dúvida sobre as suas ações. Ela só pode ser polícia judiciária, jamais um braço do presidente.
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