O mundo pós-pandemia está em disputa. De um lado, as
fragilidades de um sistema que já dava sinais de colapso podem acelerar
mudanças, como a adoção de uma renda básica universal e investimentos em uma
matriz econômica descentralizada. Tem gente exercitando a empatia e a colaboração.
Mas há também os que estão ávidos para seguir na mesma toada. Neste outro
campo, quem desmatou quer desmatar mais, quem garimpou quer garimpar mais, quem
poluiu quer poluir mais, quem precarizou o trabalho quer precarizar ainda mais.
A avaliação é da ex-senadora e ex-ministra do Meio Ambiente
Marina Silva. "Com a Segunda Guerra, alguns aprendizados foram feitos, e
um dos resultados foi a criação do Estado do bem-estar social. Essa pandemia
vai trazer o que de positivo? Se não houver medidas que reposicionem injustiças
históricas, estaremos produzindo uma seleção dos que terão chances de viver e
dos que estarão condenados", acredita.
No auge da pandemia, Marina afirma que os que atuam "à
luz da legalidade" têm mobilidade reduzida, enquanto os que atuam "na
sombra da criminalidade" estão a todo vapor — o que se revela nos índices de desmatamento e na fala do ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles em
reunião que foi a público na sexta-feira (22), na qual diz ver no foco à
Covid-19 uma oportunidade para afrouxar leis. "Ele está lá para operar
desmonte da governança ambiental. As comunidades tradicionais estão sendo
atacadas pelo coronavírus, corona-grilagem, corona-garimpo e corona-governo",
diz a ex-ministra, que vê total convergência entre o negacionismo quanto ao
colapso climático e quanto à pandemia: "Se as pessoas não se convencem com
algo posto na frente delas, imagine quando você fala: 'daqui a 50 anos, se
seguir destruindo a Amazônia, não haverá chuva no Sul, Sudeste e
Centro-Oeste'".
De Brasília, onde está em quarentena desde 1º de março com a
família, Marina Silva conversou com Ecoa por telefone em duas
ocasiões. A primeira, no dia 14, e a segunda, no sábado (23). Devido à pandemia,
seu último deslocamento, a São Paulo, aconteceu em fevereiro. Desde então, ela
precisou cancelar cinco viagens que estavam programadas, inclusive para o
Japão. A conferência acabou ocorrendo de forma remota. "Estou no grupo de
risco. Tenho 62 anos, peguei cinco malárias, hepatite, e tenho uma saúde que me
deixa em maior vulnerabilidade", diz.
Muito se fala que o mundo pós-pandemia não será o mesmo, mas
as perspectivas sobre como será este mundo oscilam conforme o noticiário. Dá
para ser otimista?
Nós vamos continuar com um mundo que terá em disputa modelos
de produzir, de consumir, de nos relacionar uns com outros e com a natureza.
Estamos vivendo uma crise civilizatória, e eu já vinha dizendo isso há muito
tempo, há mais de uma década. E essa crise civilizatória tem seus indicadores.
Temos uma grave crise econômica, que vinha desde 2008, uma crise social, uma
crise ambiental, uma crise política e de valores.
O contexto dessa crise civilizatória, que já estava em
curso, traz agora nos seus indicadores mais evidentes a crise sanitária.
Prefiro a palavra investimento do que disputando. Mas não deixa de ser uma
disputa entre quem quer continuar no mesmo modelo que já era injusto e já
estava em crise, ou um novo caminho, uma nova maneira de caminhar que a
pandemia acelerou de forma abissal. Com a Segunda Guerra, alguns aprendizados
foram feitos, e um dos resultados positivos foi a criação do Estado do
bem-estar social.
Essa pandemia vai trazer o que de positivo?
Será que é a aceleração da ideia de uma renda básica
universal, global? É disso que se trata. Isso já estava colocado na ordem do
dia em função da disrupção tecnológica. Agora, com a pandemia, está colocado
para já. Porque milhões de seres humanos vão ser privados dos seus modos de
vida. Quando você soma a crise sanitária com a crise da disrupção tecnológica,
e a alta concentração de renda no mundo, onde 1% tem mais riqueza do que mais
de quatro bilhões de seres humanos, precisa repensar: quais são os ganhos de
uma relação mais justa, mais fraterna dos seres humanos uns com os outros, de
uma relação que seja mais construtiva e produtiva.
Acho que esse modelo de liderança representado por Donald
Trump e Jair Bolsonaro só aprofunda a crise, como está aprofundando, com
consequência de milhares de mortos e infectados. Essa liderança com sede do
poder pelo poder, mais focada na eleição e no projeto de poder do que em
projeto de país, sem um olhar de compaixão para os vulneráveis, essa liderança
que não é colaborativa, não está disposta a compartilhar a autoria, a
realização e o reconhecimento dos feitos só aprofunda a crise.
Essa ideia de buscar paraísos industriais para diminuir
custos e ter um lucro cada vez mais estratosférico — como se tem transferindo
todo processo produtivo para a China, auferindo com isso maiores margens,
porque as exigências trabalhistas e condições e remunerações são bem precárias
—, isso se revela completamente inadequado. E agora nos causa um grande
prejuízo do PIB global, com um achatamento de quase 5% do nosso PIB. Quando se
quer auferir em poucas décadas os lucros que deveriam ser, de forma admirável,
auferidos ao longo talvez de um século, é isso o que acontece.
A pandemia escancara a dependência de uma logística em torno
do mercado chinês? Dá para pensar em descentralizar a produção?
Existe um movimento no mundo, principalmente na Europa, que
está buscando que esses novos investimentos já sejam para uma nova economia.
Que os investimentos não sejam para o mesmo padrão de produção e consumo, para
a mesma matriz energética, para o mesmo sistema produtivo, terceirizado e
distanciado do mercado de consumo. Esse debate precisa ser feito urgentemente
na América Latina. Tem um documento assinado por várias lideranças, não só
políticas, advogando um novo modelo de desenvolvimento. A própria
primeira-ministra da Alemanha (Angela Merkel) tem dado declarações nesta direção, de uma
economia que precisa estar em consonância com os esforços de redução de emissão
de CO2.
Não podemos fazer novos investimentos naquilo que nos trouxe
à crise. Os investimentos devem ser feitos em uma transição para uma nova
economia, e não nessa lógica da concentração cada vez maior de riqueza nas mãos
de poucos e em prejuízo de muitos.
Os cientistas estão dizendo que é possível que tenhamos de
conviver com vírus como tivemos de conviver com com Aids, com uma diferença: o
processo de contaminação da Aids é menor e diferente do coronavírus. No sistema
que temos hoje, de pessoas vivendo em situação de degradação social, humana,
cultural, ambiental, sanitária, não é à toa que as doenças estão vindo em
quantidade enorme pelas comunidades do interior dos estados. São as pessoas que
têm menos condições de se proteger.
Recentemente, um médico do Hospital das Clínicas de São
Paulo usou a palavra eugenia para dizer que é disso que se
trata quando dizemos que "só" idosos e pessoas já doentes vão morrer.
O que pensa disso?
A ideia da palavra eugenia precisa ser desdobrada. Quando
alguém advoga isso politicamente, eticamente, filosoficamente e
"fascistamente" é uma coisa. Mas existe aquela seleção que será feita
porque, historicamente, existem os que já estão condenados. Independentemente
de você ter governante que seja contra, o processo histórico produzido faz com
que existam os que não têm trabalho para viver em condições dignas, não têm uma
casa, água potável, não têm como se alimentar, acesso a educação de qualidade,
ao sistema de saúde. Isso é uma seleção estrutural. Mesmo que não haja intenção
nem o alinhamento com essas ideias fascistas de eugenia. Historicamente existem
os que são mais vulneráveis.
Hoje, a baixa circulação provoca um impacto no consumo de
combustíveis fósseis e na própria atividade industrial. Ao mesmo tempo, estamos
mais dependentes de produtos descartáveis e plásticos para equipamentos de
proteção. Tem saldo positivo?
Temos um mundo vivendo um colapso ambiental e, obviamente, a
produção de resíduos está muito grande. Você olha para os materiais que eram
recicláveis, reusáveis, e nada disso está sendo possível em função da pandemia.
Com certeza o aumento da poluição, da contaminação, da degradação dos
ecossistemas, vai ser muito grande. Já tem isso nos oceanos e em um monte de
situações que já eram graves e poderão se agravar. Os esforços para ter uma
outra matriz energética, do sol, do vento, da biomassa são fundamentais para
evitar o aquecimento do planeta. Acabamos de ver agora que a Vale e a Eletrobrás foram excluídas do fundo soberano
norueguês. Isso se dá em função de não cumprirem com regramentos
ambientais, de respeito aos índios, de proteção à natureza. Logo, logo isso vai
começar a se estender para outros segmentos se não se fizer o dever de casa.
Ignorando tudo o que está em jogo, o Brasil sinaliza aprovar
no Congresso uma Medida Provisória que regulariza o que foi roubado [a MP 910; a fala foi feita em entrevista concedida antes da
criação do PL2633]. O roubo que se faz de floresta, da Amazônia, é um
roubo igual, aliás maior, do que o "petrolão". O que está sendo
proposto a olhos nus é que o que foi roubado seja institucionalizado,
legalizado, que aqueles que grilaram terra aumentem seu patrimônio por uma ação
do Congresso Nacional de algo que foi subtraído de todos nós. Se alguém chegar
ao orçamento público da União e disser: 'eu vou pegar tanto e vou botar na
minha poupança porque vai vir uma MP para regularizar isso', haveria com
certeza uma gritaria. Aqui teve muita gritaria quando se começou a dar dinheiro
do BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social) para os tais
dos campeões nacionais sem critério e transparência.
Que avaliação a senhora faz do vídeo da reunião ministerial
do dia 22, e em especial da fala do ministro Ricardo Salles?
O que a gente assistiu ontem é um nível de falta de decoro e
refinamento institucional mínimo que acontece na intimidade do governo, e não
na intimidade pessoal. É uma cena assombrosa de desprezo pelas instituições, de
infração administrativa, de preconceito com índios, os mais vulneráveis, de
estratégia mafiosa para tentar diminuir o caráter republicano das
instituições. Quando você vê um ministro da Educação falando do jeito que
fala, querendo botar ministros do STF (Supremo Tribunal Federal) na
cadeia, é uma coisa estarrecedora. A ministra Damares Alves reclamando que
os quilombolas estão se reproduzindo demais. Ela espera que essas pessoas não
tenham filhos, não multipliquem a sua condição de existência social, cultural?
E olha que é a ministra dos Direitos Humanos.
O ministro Ricardo Salles é de uma crueza, uma torpeza
indescritível. Naquele momento [da reunião], já tínhamos no Brasil
cerca de 46 mil casos confirmados de pessoas infectadas por coronavírus, e já
tínhamos 2.924 mortes pela Covid-19. Numa situação que já mostrava que medidas
urgentes precisavam ser tomadas, não se vê ninguém falando sobre equipamento de
proteção individual, respiradores, UTI, isolamento — mesmo que fosse o
estapafúrdio isolamento vertical que o presidente defende. Na reunião
vemos 25 ministros, o presidente da República e o vice-presidente atacando e afrontando
a Constituição, a autonomia dos Poderes, as liberdades individuais, os direitos
humanos, o meio ambiente e qualquer resquício republicano de um sistema de
governo. E não tem uma palavra sobre a pandemia, a não ser para reclamar das
medidas sociais, a não ser para se aproveitar friamente, como fez o ministro
Ricardo Salles, quando ele diz que tinha que fazer passar a boiada, que a
imprensa estava, digamos, ocupada com o coronavírus, como se estivesse ocupada
com algo que não era importante. Tem uma estratégia de fazer com que as coisas
não passassem pelo Congresso, de deixar a Advocacia Geral da União de plantão
para defender o antirrepublicanismo, estimulando os outros ministros a
aproveitarem igualmente. A gente vê revelações claras do Paulo Guedes (Economia)
querendo privatizar o Brasil com adjetivos totalmente inapropriados para uma instituição que
tem o papel do Banco do Brasil na sociedade e na economia.
Sobre o ministro Ricardo Salles, nós tínhamos entrado com um
pedido de impeachment dele pela Rede. E o ministro Edson Fachin (do STF) deu
parecer pela não admissibilidade da nossa tese. Comprovada agora a nossa tese
por prevaricação, desvio de função e sabotagem da instituição que ele dirige. É
urgente a reapresentação do pedido de impeachment. Ele fala com sua própria
boca qual é a estratégia. Ele está propondo exatamente isso: desregulamentar,
facilitar. E o que assusta é não haver nenhuma comoção com o fato de haver
2.294 mortes, isso em cenário de subnotificação. Isso para ele era uma
oportunidade. "Vamos aproveitar para passar a boiada". Isso é desvio
de função, prevaricação, não ter decoro para a função.
Não por acaso, essa MP da Grilagem, que não era para ir para
a pauta do Congresso, foi colocada na pauta. Olha só como tudo se encaixa. O
acordo era só votar coisa referente ao coronavírus. De repente surge a MP da
Grilagem. Então, aquela fita é em si mesmo o conjunto da obra, o crime de
responsabilidade. Porque para assumir uma instituição, como a Presidência da
República, existem pré-requisitos. Todo o conjunto da obra, as falas do
presidente, as estratégias, o desejo dele de que prevaleça sua vontade por
sobre tudo e sobre todos. Alguém que está na Presidência da República e tem
esse comportamento, deve ser interditado. E é assustador saber que o mercado
ficou aliviado, que a montanha pariu um rato, que o Guedes está forte. Era
uma reunião que parecia que estávamos em outro planeta. Porque o planeta todo
está adoecendo e gravemente.
A pandemia acaba por encobrir as atenções sobre o
desmatamento?
Nesse momento todos temos uma preocupação forte, legítima e
correta com a pandemia, porque ela nos ceifa a vida no imediato. Sem vida não
há como fazer as outras coisas. Se, por um lado, os que atuam à luz da
legalidade têm uma mobilidade reduzida, os que atuam nas sombras da
criminalidade estão operando a todo vapor. É por isso que só em abril o
desmatamento aumentou em torno 70% comparado ao ano passado, e as projeções que
se têm é que vamos ter um desmatamento assustador nesse ano. Estamos com
aumento enorme de desmatamento no período que ainda não é o período típico das
derrubadas e queimadas. Isso é algo que precisa manter total atenção. As
comunidades tradicionais que estão sendo contaminadas precisam também de uma
atenção especial. Neste momento, elas estão sendo atacadas pelo coronavírus,
pelo corona-grilagem, pelo corona-garimpo, e pelo corona-governo, que é alheio
a elas.
Temos três questões que são essenciais: a defesa dos
direitos da dignidade, a proteção da vida e a defesa da democracia. Mas não é
prudente negligenciar outras questões. Quando a gente olha o que está
acontecendo é preciso que tenhamos autocrítica em relação a nossas prioridades.
O que vínhamos priorizando antes, agora está se revelando incapaz de nos
atender no que é essencial. Hoje estamos reeditando a pirataria moderna, com
aviões tendo de fazer rotas mirabolantes para transportar equipamentos para o
coronavírus, máscaras e materiais de proteção individual para médicos e
respiradores, porque podem ser confiscados na trajetória. Fomos capazes de
produzir tantas potências bélicas no mundo, e agora precisamos brigar por causa
do respirador mecânico.
O que está sendo colocado como desafio é a ética de
circunstâncias versus a ética de valores. Na ética de circunstâncias você faz
no curto prazo o que é mais vantajoso. Na ética de valores você faz as escolhas
olhando para aquilo que é vantajoso para todos no curto, médio e longo prazo.
Muitas coisas que às vezes no curto e médio prazo são incompreendidas, e podem
dar menos votos, menos aceitação e menos aplausos, são o que precisam ser
feitas na lógica da ética dos valores. Vamos continuar escolhendo investir no
que não assegura a dignidade da vida, abrindo mão de investir em educação, em
pesquisa, em tecnologia, em inovação? Vão ser as bolsas de iniciação científica
que serão cortadas? E saúde, educação e meio ambiente vão continuar a ser
tratados como custeio? Ou vamos deslocar os esforços e recursos humanos e
financeiros para investir naquilo que de fato sustenta a vida? Não só do ponto
de vista biológico, mas de uma vida criativa, produtiva, livre, parte de um
sistema e um modelo de desenvolvimento capaz de produzir prosperidade com
justiça social, proteção ambiental, democracia e respeito à diversidade
cultural. Qual é a argamassa que vai nos unir daqui para frente?
A senhora vê conexões entre o negacionismo do clima e o da
pandemia?
É total a convergência entre o negacionismo em relação ao
problema do colapso climático com o colapso que está sendo causado pela
Covid-19. Se as pessoas não se convencem com algo que está à sua frente,
imagine em relação a algo que você diz: 'daqui a 50 anos, se continuar
destruindo a Amazônia, não vai ter chuva no Sul, no Sudeste e no Centro-Oeste'.
O que causa estranhamento é: eles tinham coragem de vocalizar a sua indiferença
para com aqueles que, no médio e longo prazo, estão perdendo suas vidas, seus
modos de vida, seus empregos, seus territórios, suas casas, sua saúde. Agora,
vemos fazerem a mesma coisa com quem pode perder suas vidas imediatamente. A
morte está colocada diante de nós nas valas, nos cemitérios, nas UTIs, em
números, em estatísticas, em gráficos. E eles vocalizam do mesmo jeito. O que
mais causa estranheza é que, ainda assim, existam os adeptos de uma visão que é
tão anti-vida.
No ano passado, muitos negavam os efeitos das queimadas.
Agora, é a comunidade médica quem enfrenta resistências. Há paralelos?
Tem uma questão a ser pensada que é o papel da ciência nesse
mundo de crise civilizatória. A ciência se reposicionou. Só uma minoria
continua no velho paradigma da ciência preconizada por Descartes, esse
paradigma de que a ciência veio para aumentar os confortos materiais e a
duração saudável da existência humana, quase que de forma mágica. Esse
paradigma faz com que aqueles que estejam presos a ele façam total rechaço dos
cientistas que se deslocaram dessa posição. Esse é um ato político da ciência,
uma atitude crítica: dar sinais de alerta em relação a problemas da saúde,
problemas em relação a aquecimento global, aos sistemas econômicos, políticos e
sociais, o que for. Esses cientistas vão pagando um preço muito alto. É uma
espécie de ira provocada de forma violenta contra eles, por tocarem em
interesses políticos e econômicos que não querem uma ciência que venha
assombrar com previsões e diagnósticos que dizem que não podemos construir,
subtrair e explorar os recursos naturais indefinidamente.
No Brasil, no caso violento do desmatamento, o Inpe
(Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais) lançou todos os sinais de alerta, e
o que tiveram? Um processo de desmoralização pública, ataques do presidente, do
ministro do Meio Ambiente, o ministro de Ciência e Tecnologia deixando o Inpe
ser atacado e redundando no que aconteceu com o professor Ricardo Galvão. É essa visão
de velho paradigma que quer uma ciência com fórmula mágica para resolver todos
os problemas.
No terreno da ciência, sempre houve aqueles com visão
antecipatória das coisas. Há muito tem sido escrito, em artigos científicos,
que um dos problemas graves que teríamos pela frente não era mais a guerra
nuclear, mas um ataque de um vírus que poderia colapsar sistemas econômicos e
sociais, como estamos vendo agora. O primeiro ensaio sobre a questão de
mudanças climáticas foi feito por Svante Arrhenius em 1896. Ele dizia que
estávamos caminhando para um momento em que a ação humana alteraria a
temperatura da terra. Em 1988 é que se instalou o Painel Intergovernamental
para as Mudanças Climáticas. A ciência fez isso como projeção. O ser humano tem
uma capacidade maravilhosa de fazer antecipações pela filosofia, pela
espiritualidade e comprovadas pela própria ciência. E comprovadas bem antes até
mesmo de acontecerem.
As pessoas que têm visão antecipatória pagam um preço muito
alto. Porque elas trazem senões. Veja os economistas. Quando André Lara
Resende, Mônica de Bolle e outros colocavam senões a visões fundamentalistas do
neoliberalismo, eram massacrados. Agora, e se não fossem estes que já estavam
formulando (alternativas), "dizendo não é assim, não se pode entregar tudo
para o mercado"? Quando a situação fica cinzenta, o mercado recorre ao
Estado. Os EUA, a meca do liberalismo no mundo, está injetando dinheiro direto
na conta dos americanos. Estão salvando as pequenas e médias empresas. Aqueles
que não quiseram fazer o Obama Care agora têm que fazer o que o Estado tem que
fazer. Porque o Estado não pode terceirizar todas as suas atribuições para as
empresas. Algumas atividades estão sendo assumidas pelo Estado, como é o caso
da aviação.
Na sua avaliação, quando foi aberta a caixa de pandora do
anticientificismo?
Tem fatores que são desencadeantes. O Brasil tem um recalque
autoritário. Não vamos ignorar que a ditadura militar contou com apoio de
setores da sociedade brasileira. A reconquista da democracia não significou um
processo de ressignificação da experiência autoritária. Os quem têm uma visão
autoritária do mundo, da vida, da política, dos governos, ficaram vivendo o
recalque político do seu autoritarismo. Houve uma grande decepção com o que
aconteceu com os partidos da social democracia, da esquerda e de centro
esquerda. Ali começa a abrir a válvula desse vulcão. Tem ali um recalque que
aflorou. Quando você junta aqueles que já têm um viés autoritário com os
revoltados com corrupções e decepcionados profundamente, que votaram com raiva,
com vingança, junto aos que queriam projeto autoritário, isso para mim leva a
construção do Bolsonaro. E isso tem que ser pensado à luz dos erros que foram
cometidos não só do ponto de vista prático, como com a corrupção, a lógica do
poder pelo poder, que capturou tanto o PT quanto PSDB. Não vamos negar que
existem fundamentalismos de esquerda e direita. Nos fundamentalismos políticos
de esquerdas e direita, o erro não importa. Se nós pegarmos o que acontece na
Venezuela e o que acontece hoje no Brasil, a única coisa que muda é que ali
temos um fundamentalismo de esquerda. Aqui, um fundamentalista de
extrema-direita radical.
Politicamente, a senhora acredita que a aposta no
radicalismo pode produzir um cansaço por parte dos eleitores e convergir para a
moderação nas próximas eleições?
Encontrar a medida certa a ponto de criar outra visão de
sustentação política, social, cultural, para que as pessoas possam vir a ela, é
um desafio. Estou tentando desde 2010. O desafio está posto. As duas forças
gravitacionais antes eram PT x PSDB. Agora é lulismo x bolsonarismo. Tudo vira
polarização. Isolamento social x não isolamento social. Agora, democracia x
autoritarismo. Tem que tentar criar um pacto em que pessoas possam transitar
para um lugar que seja de uma desintoxicação de tudo isso que está cansando.
Fazer escolha pressupõe a existência do terceiro, e o terceiro nem sempre está
dado. Posso desejar voar, não existe como o ser humano voar, mas escolhi voar e
consegui inventar o avião. Isso é o exercício da liberdade.
Na semana passada o presidente anunciou uma guerra aos governadores. Na reunião, já falava em armar a população contra eles e os
prefeitos. Há analistas dizendo que o presidente quer expressamente uma guerra
civil. É exagero?
O que o (Hugo) Chávez fez e o (Nicolas) Maduro continuou (na
Venezuela)? O Bolsonaro é a versão da direita do Chávez. Eles montaram
milícias, com polícia, com Exército, com tudo, e estão se perpetuando no poder
por sobre aqueles que não fazem parte da panela. É isso o que o Bolsonaro quer.
É a versão à direita do chavismo. Ele quer armar a população para dar
sustentação ao governo dele. Não é para defender a democracia. Chega um momento
em que ele diz que quem não for família, Deus, Brasil, armamento, livre
mercado, está no governo errado. O que tem a ver Deus com isso?
Falar em guerra civil é um exagero?
Antes eu achava que tínhamos uma espécie de incompetência
desorganizada. Mas eles são uma incompetência organizada, estimulada. Essas
coisas têm uma estratégia, o que a gente vê nas ruas tem um estímulo político,
institucional e até material. Quando você quer prover a sociedade de meios
legais para se armar, para fazer a ideia de suas teses políticas, e quais são
essas teses políticas? Impor a sua forma de ser e pensar ao conjunto de
sociedade. Se eles acham que as cenas que a imprensa mostra, de pessoas sendo
enterradas em valas em Manaus porque o sistema de saúde colapsou, se eles acham
que isso tem de ser escondido, então é o que tem de ser imposto à imprensa, à
sociedade e aos governos que não concordam com eles.
Temos um contexto fartamente robusto para a interdição do
Bolsonaro, seja por impeachment no Congresso, seja por afastamento via Supremo.
Os males que tudo isso vai causar às instituições, com crime de lesa pátria em
tudo quanto é área, e nas três áreas mais importantes que estão neste momento
sob fogo cruzado: a saúde, a educação e o meio ambiente. Aquela reunião é
antirrepublicana, tudo ali atenta contra a instituição Presidência da
República, contra a autonomia dos Poderes. A questão da pandemia foi subtraída.
A Bolsa respirou aliviada porque não tinha a bala de prata.
Acredita que vai ser assim a longo prazo?
O Brasil está virando um pária ambiental, um pária político
e ideológico — e um pária pandêmico, como alguém já disse. Eu já dizia que o
Brasil estava se afastando do que devia ser uma democracia ocidental. Tem
investidor que vê um conjunto de ministros que se dispõe a servir a um governo
desses e se pergunta como pode confiar. O que me assusta dessa visão dos
agentes econômicos que estão aliviados porque acham que não há materialidade
para impeachment é que essa é uma interpretação política, com interesses
econômicos, de subtrair o crime de responsabilidade para manter a
"normalidade".
Pelo vídeo da reunião, a senhora ficou convencida de que o
presidente queria interferir na PF para fins pessoais?
Sim, ele está se referindo à PF do Rio de Janeiro, com
certeza. E ao conjunto. Ele conseguiu tirar o diretor, o superintendente, o
ministro. Quer mais prova do que isso? Se as pessoas não se atém ao que é dito,
que se atenham pelo menos ao que foi feito. Porque foi dito e feito.
A senhora não acha que ele [o presidente Bolsonaro] se
fortaleceu com seu grupo mais fiel, como apontam os termômetros das redes sociais?
Eles tiveram uma preparação prévia, de estímulo de redes,
sabiam que o vídeo podia sair a qualquer momento, então estavam
todos articulados, imagino. Esse é o problema dos fundamentalismos. Não importa
o que o líder faz, seja ele político ou religioso, quando você tem uma visão
fundamentalista das coisas, tudo o que é feito acaba sendo purificado,
sacralizado. Não há crítica. Esse é o perigo. No Brasil temos dois extremos.
Não importa o que o Lula diz, que está de antemão sacralizado, e agora não importa
o que o Bolsonaro diz, está de antemão sacralizado. Esse tipo de atitude no
terreno da política, quando juntam todos os fundamentalismos, é uma grande
ameaça para a democracia e as liberdades individuais, de expressão, para os
grupos vulneráveis. Não por acaso a ministra dos Direitos Humanos mostrava
estranhamento que os quilombolas estavam se reproduzindo.
Ela diz também que índios estavam morrendo para prejudicar o
governo Bolsonaro. Essa história os grupos mais reacionários sempre usam. Matam
Chico Mendes e dizem que quem tinha matado era o próprio movimento do Chico
Mendes para fazer dele um mártir. Matam a Marielle Franco e tentam dizer que
foi o seu próprio grupo que a matou. Índios estão morrendo porque estão sendo
contaminados por garimpo, grilagem, madeireiros, sem assistência, mas para eles
é o próprio movimento que está contaminando os índios. São pessoas que criam
realidades paralelas conforme as conveniências. Se alguém tem dúvida de que
esse é um governo majoritariamente negacionista, aquela reunião se deu em outro
planeta. Eles negam a realidade de 46 mil pessoas e 2.924 mortes (na época).
Naqueles trechos, tudo ali é estratégia de como proteger o poder, se manter no
poder.
O presidente não tenta unir as pessoas em torno de uma
ideia, de um projeto, mas em torno dele próprio, dos devaneios que ele tem em
relação a pátria, a família, a livre comércio, a Deus. Tem algo complicado que
aconteceu no país. Esse recalque veio à tona. Mais de 30% das pessoas aplaudem,
concordam, mais de 30% de 220 milhões de brasileiros. O que está acontecendo
que a gente está perdendo os referenciais em relação a valores, os valores que
defendem a democracia, os direitos humanos, a diversidade cultural, a justiça
social? O governo não tem plano de voo para a economia, para a pandemia, para o
Brasil. Tem um plano de naufrágio.
Em um debate de 2018, ficou famoso um enfrentamento seu com
o hoje presidente Bolsonaro sobre armamento e citações bíblicas. Há
instrumentalização da religião pelo presidente?
Sou uma pessoa que tenho fé. Sou cristã, evangélica da
Assembleia de Deus. Fui católica por muito tempo. Mas nunca fiz
instrumentalização da fé com a política nem da política com a fé. Essa
instrumentalização é um duplo prejuízo, para política e para a própria
religião. Não consigo imaginar que alguém consiga identificar nos valores do
cristianismo que alguém pudesse dizer "e daí?" para cinco mil mortes.
O que vi foi Jesus se importando com cinco mil famintos, o que eu vi foi Jesus
andando horas para ressuscitar Lázaro, Jesus se entregando ao posto com uma
mulher que era praticamente proscrita para conversar com ela, Jesus tocando em
leprosos em cidades de refúgio para curá-los. Jesus dizia que quando você
visita um preso, é a ele que você está visitando. Quando você alimenta
famintos, é a ele que você está alimentando.
Não posso julgar a fé de ninguém, quem pode é Deus. A gente
conhece a árvore pelos frutos que ela dá. Que frutos são compatíveis com o
cristianismo e o evangelho de Jesus? Está lá: bem-aventurados os que choram,
bem-aventurados os injustiçados, os que sofrem, devemos passar pela porta
estreita, quem quer ser maior seja como o que serve, não o que quer mandar.
Quem quiser ser preconceituoso contra índio, negro, mulher, gay, contra quem
quer que seja, não use os evangelhos para defender preconceitos. O evangelho
diz que Deus não faz distinção de pessoas. Não acho que seja o correto a
instrumentalização. O que não podemos é ir contra os próprios princípios da
grande contribuição que o protestantismo deu, que foi a separação do Estado e da
igreja. O Estado laico é para quem crê e para quem não crê. É lá que posso
processar a minha fé. E ser respeitada.
Como recebeu uma manifestação recente do ex-presidente Lula descartando aliança com a senhora e o também
ex-ministro Ciro Gomes?
Em 2009 (quando se desfiliou do PT), decidi que ia buscar
fazer uma síntese entre ganhos econômicos, sociais e ambientais, para fazer a
transição para um novo modelo de desenvolvimento para o Brasil. Foi uma escolha
consciente. Esse modelo se orienta a partir de princípios e valores que não são
relativizados pela lógica de que os fins justificam os meios. Para mim, meios e
fins devem ser compatíveis. E quem acha que pode lançar mão de quaisquer meios
para atingir seus fins acaba levando o país para o poço onde chegamos.
Não estou pensando só em 2022, mas em um projeto de país, não um projeto de poder. Penso o tempo todo, neste contexto de crise global, já antes da pandemia, que agora está numa numa situação abissal, como a gente pode pensar nos caminhos e nos futuros da nossa nação. Não fico preocupada em fazer o que faço de olho só em 2022. Estou dialogando com o PV, por meio da Rede, com o PSB, com o PDT, com esses partidos que não aceitam aqueles que não querem fazer a autocrítica. Porque, ao não fazer a autocrítica, estão dizendo que se tiverem uma outra chance farão tudo de novo. É uma escolha.
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