domingo, 24 de maio de 2020

MUNDO EM DISPUTA

Matheus Pichonelli, ECOA - UOL

O mundo pós-pandemia está em disputa. De um lado, as fragilidades de um sistema que já dava sinais de colapso podem acelerar mudanças, como a adoção de uma renda básica universal e investimentos em uma matriz econômica descentralizada. Tem gente exercitando a empatia e a colaboração. Mas há também os que estão ávidos para seguir na mesma toada. Neste outro campo, quem desmatou quer desmatar mais, quem garimpou quer garimpar mais, quem poluiu quer poluir mais, quem precarizou o trabalho quer precarizar ainda mais.

A avaliação é da ex-senadora e ex-ministra do Meio Ambiente Marina Silva. "Com a Segunda Guerra, alguns aprendizados foram feitos, e um dos resultados foi a criação do Estado do bem-estar social. Essa pandemia vai trazer o que de positivo? Se não houver medidas que reposicionem injustiças históricas, estaremos produzindo uma seleção dos que terão chances de viver e dos que estarão condenados", acredita.

No auge da pandemia, Marina afirma que os que atuam "à luz da legalidade" têm mobilidade reduzida, enquanto os que atuam "na sombra da criminalidade" estão a todo vapor — o que se revela nos índices de desmatamento e na fala do ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles em reunião que foi a público na sexta-feira (22), na qual diz ver no foco à Covid-19 uma oportunidade para afrouxar leis. "Ele está lá para operar desmonte da governança ambiental. As comunidades tradicionais estão sendo atacadas pelo coronavírus, corona-grilagem, corona-garimpo e corona-governo", diz a ex-ministra, que vê total convergência entre o negacionismo quanto ao colapso climático e quanto à pandemia: "Se as pessoas não se convencem com algo posto na frente delas, imagine quando você fala: 'daqui a 50 anos, se seguir destruindo a Amazônia, não haverá chuva no Sul, Sudeste e Centro-Oeste'".

De Brasília, onde está em quarentena desde 1º de março com a família, Marina Silva conversou com Ecoa por telefone em duas ocasiões. A primeira, no dia 14, e a segunda, no sábado (23). Devido à pandemia, seu último deslocamento, a São Paulo, aconteceu em fevereiro. Desde então, ela precisou cancelar cinco viagens que estavam programadas, inclusive para o Japão. A conferência acabou ocorrendo de forma remota. "Estou no grupo de risco. Tenho 62 anos, peguei cinco malárias, hepatite, e tenho uma saúde que me deixa em maior vulnerabilidade", diz.

Muito se fala que o mundo pós-pandemia não será o mesmo, mas as perspectivas sobre como será este mundo oscilam conforme o noticiário. Dá para ser otimista?

Nós vamos continuar com um mundo que terá em disputa modelos de produzir, de consumir, de nos relacionar uns com outros e com a natureza. Estamos vivendo uma crise civilizatória, e eu já vinha dizendo isso há muito tempo, há mais de uma década. E essa crise civilizatória tem seus indicadores. Temos uma grave crise econômica, que vinha desde 2008, uma crise social, uma crise ambiental, uma crise política e de valores.

O contexto dessa crise civilizatória, que já estava em curso, traz agora nos seus indicadores mais evidentes a crise sanitária. Prefiro a palavra investimento do que disputando. Mas não deixa de ser uma disputa entre quem quer continuar no mesmo modelo que já era injusto e já estava em crise, ou um novo caminho, uma nova maneira de caminhar que a pandemia acelerou de forma abissal. Com a Segunda Guerra, alguns aprendizados foram feitos, e um dos resultados positivos foi a criação do Estado do bem-estar social.

Essa pandemia vai trazer o que de positivo?

Será que é a aceleração da ideia de uma renda básica universal, global? É disso que se trata. Isso já estava colocado na ordem do dia em função da disrupção tecnológica. Agora, com a pandemia, está colocado para já. Porque milhões de seres humanos vão ser privados dos seus modos de vida. Quando você soma a crise sanitária com a crise da disrupção tecnológica, e a alta concentração de renda no mundo, onde 1% tem mais riqueza do que mais de quatro bilhões de seres humanos, precisa repensar: quais são os ganhos de uma relação mais justa, mais fraterna dos seres humanos uns com os outros, de uma relação que seja mais construtiva e produtiva.

Acho que esse modelo de liderança representado por Donald Trump e Jair Bolsonaro só aprofunda a crise, como está aprofundando, com consequência de milhares de mortos e infectados. Essa liderança com sede do poder pelo poder, mais focada na eleição e no projeto de poder do que em projeto de país, sem um olhar de compaixão para os vulneráveis, essa liderança que não é colaborativa, não está disposta a compartilhar a autoria, a realização e o reconhecimento dos feitos só aprofunda a crise.

Essa ideia de buscar paraísos industriais para diminuir custos e ter um lucro cada vez mais estratosférico — como se tem transferindo todo processo produtivo para a China, auferindo com isso maiores margens, porque as exigências trabalhistas e condições e remunerações são bem precárias —, isso se revela completamente inadequado. E agora nos causa um grande prejuízo do PIB global, com um achatamento de quase 5% do nosso PIB. Quando se quer auferir em poucas décadas os lucros que deveriam ser, de forma admirável, auferidos ao longo talvez de um século, é isso o que acontece.

A pandemia escancara a dependência de uma logística em torno do mercado chinês? Dá para pensar em descentralizar a produção?

Existe um movimento no mundo, principalmente na Europa, que está buscando que esses novos investimentos já sejam para uma nova economia. Que os investimentos não sejam para o mesmo padrão de produção e consumo, para a mesma matriz energética, para o mesmo sistema produtivo, terceirizado e distanciado do mercado de consumo. Esse debate precisa ser feito urgentemente na América Latina. Tem um documento assinado por várias lideranças, não só políticas, advogando um novo modelo de desenvolvimento. A própria primeira-ministra da Alemanha (Angela Merkel) tem dado declarações nesta direção, de uma economia que precisa estar em consonância com os esforços de redução de emissão de CO2.

Não podemos fazer novos investimentos naquilo que nos trouxe à crise. Os investimentos devem ser feitos em uma transição para uma nova economia, e não nessa lógica da concentração cada vez maior de riqueza nas mãos de poucos e em prejuízo de muitos.

Os cientistas estão dizendo que é possível que tenhamos de conviver com vírus como tivemos de conviver com com Aids, com uma diferença: o processo de contaminação da Aids é menor e diferente do coronavírus. No sistema que temos hoje, de pessoas vivendo em situação de degradação social, humana, cultural, ambiental, sanitária, não é à toa que as doenças estão vindo em quantidade enorme pelas comunidades do interior dos estados. São as pessoas que têm menos condições de se proteger.

Recentemente, um médico do Hospital das Clínicas de São Paulo usou a palavra eugenia para dizer que é disso que se trata quando dizemos que "só" idosos e pessoas já doentes vão morrer. O que pensa disso?

A ideia da palavra eugenia precisa ser desdobrada. Quando alguém advoga isso politicamente, eticamente, filosoficamente e "fascistamente" é uma coisa. Mas existe aquela seleção que será feita porque, historicamente, existem os que já estão condenados. Independentemente de você ter governante que seja contra, o processo histórico produzido faz com que existam os que não têm trabalho para viver em condições dignas, não têm uma casa, água potável, não têm como se alimentar, acesso a educação de qualidade, ao sistema de saúde. Isso é uma seleção estrutural. Mesmo que não haja intenção nem o alinhamento com essas ideias fascistas de eugenia. Historicamente existem os que são mais vulneráveis.

Hoje, a baixa circulação provoca um impacto no consumo de combustíveis fósseis e na própria atividade industrial. Ao mesmo tempo, estamos mais dependentes de produtos descartáveis e plásticos para equipamentos de proteção. Tem saldo positivo?

Temos um mundo vivendo um colapso ambiental e, obviamente, a produção de resíduos está muito grande. Você olha para os materiais que eram recicláveis, reusáveis, e nada disso está sendo possível em função da pandemia. Com certeza o aumento da poluição, da contaminação, da degradação dos ecossistemas, vai ser muito grande. Já tem isso nos oceanos e em um monte de situações que já eram graves e poderão se agravar. Os esforços para ter uma outra matriz energética, do sol, do vento, da biomassa são fundamentais para evitar o aquecimento do planeta. Acabamos de ver agora que a Vale e a Eletrobrás foram excluídas do fundo soberano norueguês. Isso se dá em função de não cumprirem com regramentos ambientais, de respeito aos índios, de proteção à natureza. Logo, logo isso vai começar a se estender para outros segmentos se não se fizer o dever de casa.

Ignorando tudo o que está em jogo, o Brasil sinaliza aprovar no Congresso uma Medida Provisória que regulariza o que foi roubado [a MP 910; a fala foi feita em entrevista concedida antes da criação do PL2633]. O roubo que se faz de floresta, da Amazônia, é um roubo igual, aliás maior, do que o "petrolão". O que está sendo proposto a olhos nus é que o que foi roubado seja institucionalizado, legalizado, que aqueles que grilaram terra aumentem seu patrimônio por uma ação do Congresso Nacional de algo que foi subtraído de todos nós. Se alguém chegar ao orçamento público da União e disser: 'eu vou pegar tanto e vou botar na minha poupança porque vai vir uma MP para regularizar isso', haveria com certeza uma gritaria. Aqui teve muita gritaria quando se começou a dar dinheiro do BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social) para os tais dos campeões nacionais sem critério e transparência.

Que avaliação a senhora faz do vídeo da reunião ministerial do dia 22, e em especial da fala do ministro Ricardo Salles?

O que a gente assistiu ontem é um nível de falta de decoro e refinamento institucional mínimo que acontece na intimidade do governo, e não na intimidade pessoal. É uma cena assombrosa de desprezo pelas instituições, de infração administrativa, de preconceito com índios, os mais vulneráveis, de estratégia mafiosa para tentar diminuir o caráter republicano das instituições. Quando você vê um ministro da Educação falando do jeito que fala, querendo botar ministros do STF (Supremo Tribunal Federal) na cadeia, é uma coisa estarrecedora. A ministra Damares Alves reclamando que os quilombolas estão se reproduzindo demais. Ela espera que essas pessoas não tenham filhos, não multipliquem a sua condição de existência social, cultural? E olha que é a ministra dos Direitos Humanos.

O ministro Ricardo Salles é de uma crueza, uma torpeza indescritível. Naquele momento [da reunião], já tínhamos no Brasil cerca de 46 mil casos confirmados de pessoas infectadas por coronavírus, e já tínhamos 2.924 mortes pela Covid-19. Numa situação que já mostrava que medidas urgentes precisavam ser tomadas, não se vê ninguém falando sobre equipamento de proteção individual, respiradores, UTI, isolamento — mesmo que fosse o estapafúrdio isolamento vertical que o presidente defende. Na reunião vemos 25 ministros, o presidente da República e o vice-presidente atacando e afrontando a Constituição, a autonomia dos Poderes, as liberdades individuais, os direitos humanos, o meio ambiente e qualquer resquício republicano de um sistema de governo. E não tem uma palavra sobre a pandemia, a não ser para reclamar das medidas sociais, a não ser para se aproveitar friamente, como fez o ministro Ricardo Salles, quando ele diz que tinha que fazer passar a boiada, que a imprensa estava, digamos, ocupada com o coronavírus, como se estivesse ocupada com algo que não era importante. Tem uma estratégia de fazer com que as coisas não passassem pelo Congresso, de deixar a Advocacia Geral da União de plantão para defender o antirrepublicanismo, estimulando os outros ministros a aproveitarem igualmente. A gente vê revelações claras do Paulo Guedes (Economia) querendo privatizar o Brasil com adjetivos totalmente inapropriados para uma instituição que tem o papel do Banco do Brasil na sociedade e na economia.

Sobre o ministro Ricardo Salles, nós tínhamos entrado com um pedido de impeachment dele pela Rede. E o ministro Edson Fachin (do STF) deu parecer pela não admissibilidade da nossa tese. Comprovada agora a nossa tese por prevaricação, desvio de função e sabotagem da instituição que ele dirige. É urgente a reapresentação do pedido de impeachment. Ele fala com sua própria boca qual é a estratégia. Ele está propondo exatamente isso: desregulamentar, facilitar. E o que assusta é não haver nenhuma comoção com o fato de haver 2.294 mortes, isso em cenário de subnotificação. Isso para ele era uma oportunidade. "Vamos aproveitar para passar a boiada". Isso é desvio de função, prevaricação, não ter decoro para a função.

Não por acaso, essa MP da Grilagem, que não era para ir para a pauta do Congresso, foi colocada na pauta. Olha só como tudo se encaixa. O acordo era só votar coisa referente ao coronavírus. De repente surge a MP da Grilagem. Então, aquela fita é em si mesmo o conjunto da obra, o crime de responsabilidade. Porque para assumir uma instituição, como a Presidência da República, existem pré-requisitos. Todo o conjunto da obra, as falas do presidente, as estratégias, o desejo dele de que prevaleça sua vontade por sobre tudo e sobre todos. Alguém que está na Presidência da República e tem esse comportamento, deve ser interditado. E é assustador saber que o mercado ficou aliviado, que a montanha pariu um rato, que o Guedes está forte. Era uma reunião que parecia que estávamos em outro planeta. Porque o planeta todo está adoecendo e gravemente.

A pandemia acaba por encobrir as atenções sobre o desmatamento?

Nesse momento todos temos uma preocupação forte, legítima e correta com a pandemia, porque ela nos ceifa a vida no imediato. Sem vida não há como fazer as outras coisas. Se, por um lado, os que atuam à luz da legalidade têm uma mobilidade reduzida, os que atuam nas sombras da criminalidade estão operando a todo vapor. É por isso que só em abril o desmatamento aumentou em torno 70% comparado ao ano passado, e as projeções que se têm é que vamos ter um desmatamento assustador nesse ano. Estamos com aumento enorme de desmatamento no período que ainda não é o período típico das derrubadas e queimadas. Isso é algo que precisa manter total atenção. As comunidades tradicionais que estão sendo contaminadas precisam também de uma atenção especial. Neste momento, elas estão sendo atacadas pelo coronavírus, pelo corona-grilagem, pelo corona-garimpo, e pelo corona-governo, que é alheio a elas.

Temos três questões que são essenciais: a defesa dos direitos da dignidade, a proteção da vida e a defesa da democracia. Mas não é prudente negligenciar outras questões. Quando a gente olha o que está acontecendo é preciso que tenhamos autocrítica em relação a nossas prioridades. O que vínhamos priorizando antes, agora está se revelando incapaz de nos atender no que é essencial. Hoje estamos reeditando a pirataria moderna, com aviões tendo de fazer rotas mirabolantes para transportar equipamentos para o coronavírus, máscaras e materiais de proteção individual para médicos e respiradores, porque podem ser confiscados na trajetória. Fomos capazes de produzir tantas potências bélicas no mundo, e agora precisamos brigar por causa do respirador mecânico.

O que está sendo colocado como desafio é a ética de circunstâncias versus a ética de valores. Na ética de circunstâncias você faz no curto prazo o que é mais vantajoso. Na ética de valores você faz as escolhas olhando para aquilo que é vantajoso para todos no curto, médio e longo prazo. Muitas coisas que às vezes no curto e médio prazo são incompreendidas, e podem dar menos votos, menos aceitação e menos aplausos, são o que precisam ser feitas na lógica da ética dos valores. Vamos continuar escolhendo investir no que não assegura a dignidade da vida, abrindo mão de investir em educação, em pesquisa, em tecnologia, em inovação? Vão ser as bolsas de iniciação científica que serão cortadas? E saúde, educação e meio ambiente vão continuar a ser tratados como custeio? Ou vamos deslocar os esforços e recursos humanos e financeiros para investir naquilo que de fato sustenta a vida? Não só do ponto de vista biológico, mas de uma vida criativa, produtiva, livre, parte de um sistema e um modelo de desenvolvimento capaz de produzir prosperidade com justiça social, proteção ambiental, democracia e respeito à diversidade cultural. Qual é a argamassa que vai nos unir daqui para frente?

A senhora vê conexões entre o negacionismo do clima e o da pandemia?

É total a convergência entre o negacionismo em relação ao problema do colapso climático com o colapso que está sendo causado pela Covid-19. Se as pessoas não se convencem com algo que está à sua frente, imagine em relação a algo que você diz: 'daqui a 50 anos, se continuar destruindo a Amazônia, não vai ter chuva no Sul, no Sudeste e no Centro-Oeste'. O que causa estranhamento é: eles tinham coragem de vocalizar a sua indiferença para com aqueles que, no médio e longo prazo, estão perdendo suas vidas, seus modos de vida, seus empregos, seus territórios, suas casas, sua saúde. Agora, vemos fazerem a mesma coisa com quem pode perder suas vidas imediatamente. A morte está colocada diante de nós nas valas, nos cemitérios, nas UTIs, em números, em estatísticas, em gráficos. E eles vocalizam do mesmo jeito. O que mais causa estranheza é que, ainda assim, existam os adeptos de uma visão que é tão anti-vida.

No ano passado, muitos negavam os efeitos das queimadas. Agora, é a comunidade médica quem enfrenta resistências. Há paralelos?

Tem uma questão a ser pensada que é o papel da ciência nesse mundo de crise civilizatória. A ciência se reposicionou. Só uma minoria continua no velho paradigma da ciência preconizada por Descartes, esse paradigma de que a ciência veio para aumentar os confortos materiais e a duração saudável da existência humana, quase que de forma mágica. Esse paradigma faz com que aqueles que estejam presos a ele façam total rechaço dos cientistas que se deslocaram dessa posição. Esse é um ato político da ciência, uma atitude crítica: dar sinais de alerta em relação a problemas da saúde, problemas em relação a aquecimento global, aos sistemas econômicos, políticos e sociais, o que for. Esses cientistas vão pagando um preço muito alto. É uma espécie de ira provocada de forma violenta contra eles, por tocarem em interesses políticos e econômicos que não querem uma ciência que venha assombrar com previsões e diagnósticos que dizem que não podemos construir, subtrair e explorar os recursos naturais indefinidamente.

No Brasil, no caso violento do desmatamento, o Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais) lançou todos os sinais de alerta, e o que tiveram? Um processo de desmoralização pública, ataques do presidente, do ministro do Meio Ambiente, o ministro de Ciência e Tecnologia deixando o Inpe ser atacado e redundando no que aconteceu com o professor Ricardo Galvão. É essa visão de velho paradigma que quer uma ciência com fórmula mágica para resolver todos os problemas.

No terreno da ciência, sempre houve aqueles com visão antecipatória das coisas. Há muito tem sido escrito, em artigos científicos, que um dos problemas graves que teríamos pela frente não era mais a guerra nuclear, mas um ataque de um vírus que poderia colapsar sistemas econômicos e sociais, como estamos vendo agora. O primeiro ensaio sobre a questão de mudanças climáticas foi feito por Svante Arrhenius em 1896. Ele dizia que estávamos caminhando para um momento em que a ação humana alteraria a temperatura da terra. Em 1988 é que se instalou o Painel Intergovernamental para as Mudanças Climáticas. A ciência fez isso como projeção. O ser humano tem uma capacidade maravilhosa de fazer antecipações pela filosofia, pela espiritualidade e comprovadas pela própria ciência. E comprovadas bem antes até mesmo de acontecerem.

As pessoas que têm visão antecipatória pagam um preço muito alto. Porque elas trazem senões. Veja os economistas. Quando André Lara Resende, Mônica de Bolle e outros colocavam senões a visões fundamentalistas do neoliberalismo, eram massacrados. Agora, e se não fossem estes que já estavam formulando (alternativas), "dizendo não é assim, não se pode entregar tudo para o mercado"? Quando a situação fica cinzenta, o mercado recorre ao Estado. Os EUA, a meca do liberalismo no mundo, está injetando dinheiro direto na conta dos americanos. Estão salvando as pequenas e médias empresas. Aqueles que não quiseram fazer o Obama Care agora têm que fazer o que o Estado tem que fazer. Porque o Estado não pode terceirizar todas as suas atribuições para as empresas. Algumas atividades estão sendo assumidas pelo Estado, como é o caso da aviação.

Na sua avaliação, quando foi aberta a caixa de pandora do anticientificismo?

Tem fatores que são desencadeantes. O Brasil tem um recalque autoritário. Não vamos ignorar que a ditadura militar contou com apoio de setores da sociedade brasileira. A reconquista da democracia não significou um processo de ressignificação da experiência autoritária. Os quem têm uma visão autoritária do mundo, da vida, da política, dos governos, ficaram vivendo o recalque político do seu autoritarismo. Houve uma grande decepção com o que aconteceu com os partidos da social democracia, da esquerda e de centro esquerda. Ali começa a abrir a válvula desse vulcão. Tem ali um recalque que aflorou. Quando você junta aqueles que já têm um viés autoritário com os revoltados com corrupções e decepcionados profundamente, que votaram com raiva, com vingança, junto aos que queriam projeto autoritário, isso para mim leva a construção do Bolsonaro. E isso tem que ser pensado à luz dos erros que foram cometidos não só do ponto de vista prático, como com a corrupção, a lógica do poder pelo poder, que capturou tanto o PT quanto PSDB. Não vamos negar que existem fundamentalismos de esquerda e direita. Nos fundamentalismos políticos de esquerdas e direita, o erro não importa. Se nós pegarmos o que acontece na Venezuela e o que acontece hoje no Brasil, a única coisa que muda é que ali temos um fundamentalismo de esquerda. Aqui, um fundamentalista de extrema-direita radical.

Politicamente, a senhora acredita que a aposta no radicalismo pode produzir um cansaço por parte dos eleitores e convergir para a moderação nas próximas eleições?

Encontrar a medida certa a ponto de criar outra visão de sustentação política, social, cultural, para que as pessoas possam vir a ela, é um desafio. Estou tentando desde 2010. O desafio está posto. As duas forças gravitacionais antes eram PT x PSDB. Agora é lulismo x bolsonarismo. Tudo vira polarização. Isolamento social x não isolamento social. Agora, democracia x autoritarismo. Tem que tentar criar um pacto em que pessoas possam transitar para um lugar que seja de uma desintoxicação de tudo isso que está cansando. Fazer escolha pressupõe a existência do terceiro, e o terceiro nem sempre está dado. Posso desejar voar, não existe como o ser humano voar, mas escolhi voar e consegui inventar o avião. Isso é o exercício da liberdade.

Na semana passada o presidente anunciou uma guerra aos governadores. Na reunião, já falava em armar a população contra eles e os prefeitos. Há analistas dizendo que o presidente quer expressamente uma guerra civil. É exagero?

O que o (Hugo) Chávez fez e o (Nicolas) Maduro continuou (na Venezuela)? O Bolsonaro é a versão da direita do Chávez. Eles montaram milícias, com polícia, com Exército, com tudo, e estão se perpetuando no poder por sobre aqueles que não fazem parte da panela. É isso o que o Bolsonaro quer. É a versão à direita do chavismo. Ele quer armar a população para dar sustentação ao governo dele. Não é para defender a democracia. Chega um momento em que ele diz que quem não for família, Deus, Brasil, armamento, livre mercado, está no governo errado. O que tem a ver Deus com isso?

Falar em guerra civil é um exagero?

Antes eu achava que tínhamos uma espécie de incompetência desorganizada. Mas eles são uma incompetência organizada, estimulada. Essas coisas têm uma estratégia, o que a gente vê nas ruas tem um estímulo político, institucional e até material. Quando você quer prover a sociedade de meios legais para se armar, para fazer a ideia de suas teses políticas, e quais são essas teses políticas? Impor a sua forma de ser e pensar ao conjunto de sociedade. Se eles acham que as cenas que a imprensa mostra, de pessoas sendo enterradas em valas em Manaus porque o sistema de saúde colapsou, se eles acham que isso tem de ser escondido, então é o que tem de ser imposto à imprensa, à sociedade e aos governos que não concordam com eles.

Temos um contexto fartamente robusto para a interdição do Bolsonaro, seja por impeachment no Congresso, seja por afastamento via Supremo. Os males que tudo isso vai causar às instituições, com crime de lesa pátria em tudo quanto é área, e nas três áreas mais importantes que estão neste momento sob fogo cruzado: a saúde, a educação e o meio ambiente. Aquela reunião é antirrepublicana, tudo ali atenta contra a instituição Presidência da República, contra a autonomia dos Poderes. A questão da pandemia foi subtraída.

A Bolsa respirou aliviada porque não tinha a bala de prata. Acredita que vai ser assim a longo prazo?

O Brasil está virando um pária ambiental, um pária político e ideológico — e um pária pandêmico, como alguém já disse. Eu já dizia que o Brasil estava se afastando do que devia ser uma democracia ocidental. Tem investidor que vê um conjunto de ministros que se dispõe a servir a um governo desses e se pergunta como pode confiar. O que me assusta dessa visão dos agentes econômicos que estão aliviados porque acham que não há materialidade para impeachment é que essa é uma interpretação política, com interesses econômicos, de subtrair o crime de responsabilidade para manter a "normalidade".

Pelo vídeo da reunião, a senhora ficou convencida de que o presidente queria interferir na PF para fins pessoais?

Sim, ele está se referindo à PF do Rio de Janeiro, com certeza. E ao conjunto. Ele conseguiu tirar o diretor, o superintendente, o ministro. Quer mais prova do que isso? Se as pessoas não se atém ao que é dito, que se atenham pelo menos ao que foi feito. Porque foi dito e feito.

A senhora não acha que ele [o presidente Bolsonaro] se fortaleceu com seu grupo mais fiel, como apontam os termômetros das redes sociais?

Eles tiveram uma preparação prévia, de estímulo de redes, sabiam que o vídeo podia sair a qualquer momento, então estavam todos articulados, imagino. Esse é o problema dos fundamentalismos. Não importa o que o líder faz, seja ele político ou religioso, quando você tem uma visão fundamentalista das coisas, tudo o que é feito acaba sendo purificado, sacralizado. Não há crítica. Esse é o perigo. No Brasil temos dois extremos. Não importa o que o Lula diz, que está de antemão sacralizado, e agora não importa o que o Bolsonaro diz, está de antemão sacralizado. Esse tipo de atitude no terreno da política, quando juntam todos os fundamentalismos, é uma grande ameaça para a democracia e as liberdades individuais, de expressão, para os grupos vulneráveis. Não por acaso a ministra dos Direitos Humanos mostrava estranhamento que os quilombolas estavam se reproduzindo.

Ela diz também que índios estavam morrendo para prejudicar o governo Bolsonaro. Essa história os grupos mais reacionários sempre usam. Matam Chico Mendes e dizem que quem tinha matado era o próprio movimento do Chico Mendes para fazer dele um mártir. Matam a Marielle Franco e tentam dizer que foi o seu próprio grupo que a matou. Índios estão morrendo porque estão sendo contaminados por garimpo, grilagem, madeireiros, sem assistência, mas para eles é o próprio movimento que está contaminando os índios. São pessoas que criam realidades paralelas conforme as conveniências. Se alguém tem dúvida de que esse é um governo majoritariamente negacionista, aquela reunião se deu em outro planeta. Eles negam a realidade de 46 mil pessoas e 2.924 mortes (na época). Naqueles trechos, tudo ali é estratégia de como proteger o poder, se manter no poder.

O presidente não tenta unir as pessoas em torno de uma ideia, de um projeto, mas em torno dele próprio, dos devaneios que ele tem em relação a pátria, a família, a livre comércio, a Deus. Tem algo complicado que aconteceu no país. Esse recalque veio à tona. Mais de 30% das pessoas aplaudem, concordam, mais de 30% de 220 milhões de brasileiros. O que está acontecendo que a gente está perdendo os referenciais em relação a valores, os valores que defendem a democracia, os direitos humanos, a diversidade cultural, a justiça social? O governo não tem plano de voo para a economia, para a pandemia, para o Brasil. Tem um plano de naufrágio.

Em um debate de 2018, ficou famoso um enfrentamento seu com o hoje presidente Bolsonaro sobre armamento e citações bíblicas. Há instrumentalização da religião pelo presidente?

Sou uma pessoa que tenho fé. Sou cristã, evangélica da Assembleia de Deus. Fui católica por muito tempo. Mas nunca fiz instrumentalização da fé com a política nem da política com a fé. Essa instrumentalização é um duplo prejuízo, para política e para a própria religião. Não consigo imaginar que alguém consiga identificar nos valores do cristianismo que alguém pudesse dizer "e daí?" para cinco mil mortes. O que vi foi Jesus se importando com cinco mil famintos, o que eu vi foi Jesus andando horas para ressuscitar Lázaro, Jesus se entregando ao posto com uma mulher que era praticamente proscrita para conversar com ela, Jesus tocando em leprosos em cidades de refúgio para curá-los. Jesus dizia que quando você visita um preso, é a ele que você está visitando. Quando você alimenta famintos, é a ele que você está alimentando.

Não posso julgar a fé de ninguém, quem pode é Deus. A gente conhece a árvore pelos frutos que ela dá. Que frutos são compatíveis com o cristianismo e o evangelho de Jesus? Está lá: bem-aventurados os que choram, bem-aventurados os injustiçados, os que sofrem, devemos passar pela porta estreita, quem quer ser maior seja como o que serve, não o que quer mandar. Quem quiser ser preconceituoso contra índio, negro, mulher, gay, contra quem quer que seja, não use os evangelhos para defender preconceitos. O evangelho diz que Deus não faz distinção de pessoas. Não acho que seja o correto a instrumentalização. O que não podemos é ir contra os próprios princípios da grande contribuição que o protestantismo deu, que foi a separação do Estado e da igreja. O Estado laico é para quem crê e para quem não crê. É lá que posso processar a minha fé. E ser respeitada.

Como recebeu uma manifestação recente do ex-presidente Lula descartando aliança com a senhora e o também ex-ministro Ciro Gomes?

Em 2009 (quando se desfiliou do PT), decidi que ia buscar fazer uma síntese entre ganhos econômicos, sociais e ambientais, para fazer a transição para um novo modelo de desenvolvimento para o Brasil. Foi uma escolha consciente. Esse modelo se orienta a partir de princípios e valores que não são relativizados pela lógica de que os fins justificam os meios. Para mim, meios e fins devem ser compatíveis. E quem acha que pode lançar mão de quaisquer meios para atingir seus fins acaba levando o país para o poço onde chegamos.

Não estou pensando só em 2022, mas em um projeto de país, não um projeto de poder. Penso o tempo todo, neste contexto de crise global, já antes da pandemia, que agora está numa numa situação abissal, como a gente pode pensar nos caminhos e nos futuros da nossa nação. Não fico preocupada em fazer o que faço de olho só em 2022. Estou dialogando com o PV, por meio da Rede, com o PSB, com o PDT, com esses partidos que não aceitam aqueles que não querem fazer a autocrítica. Porque, ao não fazer a autocrítica, estão dizendo que se tiverem uma outra chance farão tudo de novo. É uma escolha.

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