segunda-feira, 25 de maio de 2020

O CARRASCO E O PAVOR DO PATÍBULO

Weiller Diniz, OS DIVERGENTES

Os carrascos têm a existência atormentada pelo sangue esguichado de suas guilhotinas. O que passa em suas cabeças quando as coisas se invertem e eles caminham em direção ao patíbulo para o sacrifício: orgulho da vida de impiedades; escusas àqueles anônimos e eventuais inocentes que imolou; indulgência aos poderosos, que agora querem decapitá-lo; apelo a um processo isonômico ou apenas a morte silenciosa e resignada como arremate de uma vida inumana?

Sérgio Moro, à feição dos verdugos, tem índole dolosa. A nova toga da vindita não o converte em vítima, menos em promotor da legalidade. Repelido pelo capitão da Descalábria (país imaginário ao sul do equador) invocou o Estado de Direito para delatar, tardiamente, a intervenção política na PF. Também se insurgiu contra a disparidade de armas e recriminou o vazamento parcial em uma transcrição. Seletividade foi o padrão da lava jato em sua comarca, em Curitiba. Não tem bons antecedentes na lide.

Antes da fama, em 2004, Sérgio Moro prolatou uma doutrina peculiar da transgressão. O libelo incensando a operação “mãos limpas” e o promotor Antônio Di Pietro tornou-se o vade mecum dos lavajatistas. Eis a súmula do memorial fascista: 1) presunção da inocência pode ser mitigada para encarcerar suspeitos indefinidamente; 2) prender para delatar; 3) deslegitimar a classe política e, 4) publicidade opressiva contra os investigados. O código personalíssimo do magistrado, recepcionado literalmente pela lava jato, foi capital para história. “Mãos limpas” não nasceu como projeto de poder. A diferença da lava jato é esclarecedora.

“Os responsáveis pela operação mani pulite ainda fizeram largo uso da imprensa. Com efeito: Para o desgosto dos líderes do PSI, que, por certo, nunca pararam de manipular a imprensa, a investigação da “mani pulite” vazava como uma peneira. Tão logo alguém era preso, detalhes de sua confissão eram veiculados no “L’Expresso”, no “La Republica” e outros jornais e revistas simpatizantes. Apesar de não existir nenhuma sugestão de que algum dos procuradores mais envolvidos com a investigação teria deliberadamente alimentado a imprensa com informações, os vazamentos serviram a um propósito útil. O constante fluxo de revelações manteve o interesse do público elevado e os líderes partidários na defensiva”, cravou o doutrinador Moro.

O patrocínio da publicidade opressiva – condenada pelo sistema judiciário de nações civilizadas – assombra a democracia e desequilibra intencionalmente a balança da Justiça. Tribunais não são fóruns burocráticos para bater o martelo sobre vereditos já pré-fixados por massacres midiáticos. Em ambientes de “faca no pescoço” o julgamento justo e imparcial é inalcançável. Agrava quando o patrono dos vazamentos é o togado que busca o consentimento da opinião pública, através da mídia, para condenar. “A publicidade tem objetivos legítimos e que não podem ser alcançados por outros meios”, aduziu o então juiz.

Sérgio Moro não apenas redigiu um arrazoado bizantino. Executou. Em março de 2016 usou impunemente a “peneira” do vazamento com um grampo duplamente ilegal: o diálogo entre os ex-presidentes Lula e Dilma Roussef. A gravação vazada ocorreu duas horas depois de expirada a autorização judicial. Moro também não tinha competência. O foro era o STF. Jamais se penitenciou pelo desaforo e usurpação. Apelou ao “interesse público”.

Ao sentenciar Lula rascunhou o salvo-conduto a projetos fascistas. Premiado com o Ministério da Justiça foi, por 14 meses, um devotado sabujo do capitão da Toscânia (outra região fictícia) e fez vistas grossas para delitos. Por insondáveis ambições, tornou-se um delator insidioso.

“A presunção de inocência, no mais das vezes invocada como óbice a prisões pré-julgamento, não é absoluta, constituindo apenas instrumento pragmático destinado a prevenir a prisão de inocentes”, pontificou o então magistrado em tom inquisitorial no artigo sorvido pela lava jato. Assinando Sérgio Fernando Moro, em 2010, no livro “Crime de Lavagem de Dinheiro”, discrepava: “A presunção da inocência é o princípio cardeal do processo penal em um Estado de Democrático de Direito. É o alicerce sobre o qual todo o sistema normativo processual penal é construído.”

O heterônimo Sérgio Fernando é o democrata em pessoa. A presunção da inocência é uma das mais importantes garantias constitucionais e sustentáculo do Estado de Direito. A origem dela está na revolução francesa, que consagrou o iluminismo, a Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão e a guilhotina. O princípio também é pedra angular da Declaração Universal dos Direitos Humanos e da Constituição brasileira: “Ninguém será considerado culpado até trânsito em julgado de sentença penal condenatória”.

A relativização da presunção da inocência transformou em regra a exceção, a prisão preventiva. Teorizada em 2004, ela foi vulgarizada anos depois em alvos escolhidos da lava jato, atendendo ao pendor punitivo e vaidade desmedida. Corrupiando entre a militância e a meliância jurídica, Sérgio Moro converteu-se no demônio da conveniência para exorcizar a prevalência das leis sobre as pessoas. Pregou o mandamento do solar Luis XIV: “Eu sou a lei. Eu sou o Estado. O Estado sou eu”.

“A deslegitimação da classe política propiciou um ímpeto às investigações de corrupção e os resultados desta fortaleceram o processo de deslegitimação. Conseqüentemente, as investigações judiciais dos crimes contra a Administração Pública espalharam-se como fogo selvagem, desnudando inclusive a compra e venda de votos e as relações orgânicas entre certos políticos e o crime organizado. O processo de deslegitimação foi essencial para a própria continuidade da operação mani pulite”, escreveu Sérgio Moro.

A fumaça desse “fogo selvagem” para desqualificação generalizada não se confunde com a do bom direito. Igualmente não disfarça a sanha persecutória. A premeditação, escolha de alvos e vazamentos seletivos ficaram transparentes nas tocaias reveladas pelos diálogos no “The Intercept”. O árbitro pautou a lava jato, segundo seus interesses. Escalou procuradores, inverteu fases, grampeou advogados, ditou notas públicas do MP contra investigados, blindou políticos e elegeu troféus. Pintou e bordou. Em 2018, véspera da eleição, “fez largo uso da imprensa” e vazou a delação de Antônio Palocci, considerada fraca, para “simpatizantes”.

“No Brasil, encontram-se presentes várias das condições institucionais necessárias para a realização de ação judicial semelhante. Assim como na Itália, a classe política não goza de grande prestígio junto à população, sendo grande a frustração pelas promessas não-cumpridas após a restauração democrática. Por outro lado, a magistratura e o Ministério Público brasileiros gozam de significativa independência formal frente ao poder político”, convocou Moro.

A demonização da política, enunciada acima, empacotou a lava jato. Segundo Moro “a magistratura ganhou uma espécie de legitimidade direta da opinião pública”. A delegação propagada por ele inexiste. Foi usurpada diante do silêncio do STF e do Conselho Nacional de Justiça. Sérgio Moro plagiou os métodos e também os passos do mentor italiano, Antônio di Pietro. Depois de quebrar a promessa de não ingressar na política, Di Pietro virou um herói nacional efêmero, mais popular que o Papa. Mas a queda do céu ao inferno, de ambos, foi abrupta.

Di Pietro foi ministro, senador, deputado e fundou o próprio partido. Envolvido em escândalos de malversação de fundos foi condenado pelo Tribunal de Roma. De mãos sujas, abandonou a própria legenda. A “mani pulite” entronizou Silvio Berlusconi no poder por anos. O fascismo italiano, como aqui, tem sua etimologia em operações assinaladas por excessos, abusos em prisões preventivas, espetacularização midiática, seletividade, perseguições e ruptura com alicerces da Democracia. É insano achar que repetindo os mesmos erros haveria resultados diferentes.

Nos litígios políticos, sem a pena de Curitiba, Moro foi moído, depois enxotado. Acumulou derrotas. Perdeu o poder de bisbilhotar no COAF, foi derrotado na cruzada contra a lei para punir abuso das autoridades, o pacote anticrime e seus juízos antidemocráticos foi desmontado, anulou-se o acordo de R$ 2,5 bi da Petrobrás com lava jato, teve sentenças reformadas no STF, não emplacou a CPI da toga em 3 tentativas de emparedar os ministros, não indicou um procurador amigo para PGR, perdeu a tese da prisão após a 2 instância e a “Moro de saias”, ex-senadora Selma Arruda, foi cassada por caixa 2. Sérgio Moro teria intercedido por ela no TSE.

A conduta de Sérgio Moro como magistrado, a exemplo dos tribunais do Santo Ofício, fundiu deliberadamente as figuras do acusador e do julgador, corrompendo ambos. Como político, tornou-se alvo do ovo da serpente que ajudou a chocar. Tenta se reposicionar como iluminista, mas o legado remete ao terror francês, onde processos precários e genéricos levaram à degolas. Iniciado com a realeza absolutista – o rei Luiz XVI e a rainha Maria Antonieta -, terminou no pescoço do seu correspondente, ex-ministro da Justiça, George-Jacques Danton e Maximilien de Robespierre, líder dos Jacobinos e ideólogo do terrorismo de Estado.

Moro coleciona maus antecedentes dos transgressores. A procuradora Monique Cheker teria dito que “Moro viola sempre o sistema acusatório e é tolerado por seus resultados”. Ao ser expelido da capitania de Bolsonaro se autoincriminou em outra ilegalidade, concussão. Confessou que aceitou o cargo em troca de uma pensão para a família. “Sérgio Moro como juiz é indigno, como político medíocre, como pessoa lamentável”, sentenciou o ex-ministro português, José Sócrates, conhecido antagonista de Moro, que rebateu chamando-o de “criminoso” ao refugar de um debate na TV. Moro, o incorruptível como Robespierre, se aproximou perigosamente do cadafalso mais rápido que Di Pietro.

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