Os carrascos têm a existência atormentada pelo sangue
esguichado de suas guilhotinas. O que passa em suas cabeças quando as coisas se
invertem e eles caminham em direção ao patíbulo para o sacrifício: orgulho da
vida de impiedades; escusas àqueles anônimos e eventuais inocentes que imolou;
indulgência aos poderosos, que agora querem decapitá-lo; apelo a um processo
isonômico ou apenas a morte silenciosa e resignada como arremate de uma vida
inumana?
Sérgio Moro, à feição dos verdugos, tem índole dolosa. A
nova toga da vindita não o converte em vítima, menos em promotor da legalidade.
Repelido pelo capitão da Descalábria (país imaginário ao sul do equador)
invocou o Estado de Direito para delatar, tardiamente, a intervenção política
na PF. Também se insurgiu contra a disparidade de armas e recriminou o
vazamento parcial em uma transcrição. Seletividade foi o padrão da lava jato em
sua comarca, em Curitiba. Não tem bons antecedentes na lide.
Antes da fama, em 2004, Sérgio Moro prolatou uma doutrina
peculiar da transgressão. O libelo incensando a operação “mãos limpas” e o
promotor Antônio Di Pietro tornou-se o vade mecum dos lavajatistas. Eis a
súmula do memorial fascista: 1) presunção da inocência pode ser mitigada para
encarcerar suspeitos indefinidamente; 2) prender para delatar; 3) deslegitimar
a classe política e, 4) publicidade opressiva contra os investigados. O código
personalíssimo do magistrado, recepcionado literalmente pela lava jato, foi capital
para história. “Mãos limpas” não nasceu como projeto de poder. A diferença da
lava jato é esclarecedora.
“Os responsáveis pela operação mani pulite ainda fizeram
largo uso da imprensa. Com efeito: Para o desgosto dos líderes do PSI, que, por
certo, nunca pararam de manipular a imprensa, a investigação da “mani pulite”
vazava como uma peneira. Tão logo alguém era preso, detalhes de sua confissão
eram veiculados no “L’Expresso”, no “La Republica” e outros jornais e revistas
simpatizantes. Apesar de não existir nenhuma sugestão de que algum dos
procuradores mais envolvidos com a investigação teria deliberadamente
alimentado a imprensa com informações, os vazamentos serviram a um propósito
útil. O constante fluxo de revelações manteve o interesse do público elevado e
os líderes partidários na defensiva”, cravou o doutrinador Moro.
O patrocínio da publicidade opressiva – condenada pelo
sistema judiciário de nações civilizadas – assombra a democracia e desequilibra
intencionalmente a balança da Justiça. Tribunais não são fóruns burocráticos
para bater o martelo sobre vereditos já pré-fixados por massacres midiáticos.
Em ambientes de “faca no pescoço” o julgamento justo e imparcial é
inalcançável. Agrava quando o patrono dos vazamentos é o togado que busca o
consentimento da opinião pública, através da mídia, para condenar. “A
publicidade tem objetivos legítimos e que não podem ser alcançados por outros
meios”, aduziu o então juiz.
Sérgio Moro não apenas redigiu um arrazoado bizantino.
Executou. Em março de 2016 usou impunemente a “peneira” do vazamento com um
grampo duplamente ilegal: o diálogo entre os ex-presidentes Lula e Dilma
Roussef. A gravação vazada ocorreu duas horas depois de expirada a autorização
judicial. Moro também não tinha competência. O foro era o STF. Jamais se
penitenciou pelo desaforo e usurpação. Apelou ao “interesse público”.
Ao sentenciar Lula rascunhou o salvo-conduto a projetos
fascistas. Premiado com o Ministério da Justiça foi, por 14 meses, um devotado
sabujo do capitão da Toscânia (outra região fictícia) e fez vistas grossas para
delitos. Por insondáveis ambições, tornou-se um delator insidioso.
“A presunção de inocência, no mais das vezes invocada como
óbice a prisões pré-julgamento, não é absoluta, constituindo apenas instrumento
pragmático destinado a prevenir a prisão de inocentes”, pontificou o então
magistrado em tom inquisitorial no artigo sorvido pela lava jato. Assinando
Sérgio Fernando Moro, em 2010, no livro “Crime de Lavagem de Dinheiro”,
discrepava: “A presunção da inocência é o princípio cardeal do processo penal
em um Estado de Democrático de Direito. É o alicerce sobre o qual todo o
sistema normativo processual penal é construído.”
O heterônimo Sérgio Fernando é o democrata em pessoa. A
presunção da inocência é uma das mais importantes garantias constitucionais e
sustentáculo do Estado de Direito. A origem dela está na revolução francesa,
que consagrou o iluminismo, a Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão e a
guilhotina. O princípio também é pedra angular da Declaração Universal dos
Direitos Humanos e da Constituição brasileira: “Ninguém será considerado
culpado até trânsito em julgado de sentença penal condenatória”.
A relativização da presunção da inocência transformou em
regra a exceção, a prisão preventiva. Teorizada em 2004, ela foi vulgarizada
anos depois em alvos escolhidos da lava jato, atendendo ao pendor punitivo e
vaidade desmedida. Corrupiando entre a militância e a meliância jurídica,
Sérgio Moro converteu-se no demônio da conveniência para exorcizar a
prevalência das leis sobre as pessoas. Pregou o mandamento do solar Luis XIV:
“Eu sou a lei. Eu sou o Estado. O Estado sou eu”.
“A deslegitimação da classe política propiciou um ímpeto às
investigações de corrupção e os resultados desta fortaleceram o processo de
deslegitimação. Conseqüentemente, as investigações judiciais dos crimes contra
a Administração Pública espalharam-se como fogo selvagem, desnudando inclusive
a compra e venda de votos e as relações orgânicas entre certos políticos e o
crime organizado. O processo de deslegitimação foi essencial para a própria
continuidade da operação mani pulite”, escreveu Sérgio Moro.
A fumaça desse “fogo selvagem” para desqualificação generalizada
não se confunde com a do bom direito. Igualmente não disfarça a sanha
persecutória. A premeditação, escolha de alvos e vazamentos seletivos ficaram
transparentes nas tocaias reveladas pelos diálogos no “The Intercept”. O
árbitro pautou a lava jato, segundo seus interesses. Escalou procuradores,
inverteu fases, grampeou advogados, ditou notas públicas do MP contra
investigados, blindou políticos e elegeu troféus. Pintou e bordou. Em 2018,
véspera da eleição, “fez largo uso da imprensa” e vazou a delação de Antônio
Palocci, considerada fraca, para “simpatizantes”.
“No Brasil, encontram-se presentes várias das condições
institucionais necessárias para a realização de ação judicial semelhante. Assim
como na Itália, a classe política não goza de grande prestígio junto à
população, sendo grande a frustração pelas promessas não-cumpridas após a
restauração democrática. Por outro lado, a magistratura e o Ministério Público
brasileiros gozam de significativa independência formal frente ao poder
político”, convocou Moro.
A demonização da política, enunciada acima, empacotou a lava
jato. Segundo Moro “a magistratura ganhou uma espécie de legitimidade direta da
opinião pública”. A delegação propagada por ele inexiste. Foi usurpada diante
do silêncio do STF e do Conselho Nacional de Justiça. Sérgio Moro plagiou os
métodos e também os passos do mentor italiano, Antônio di Pietro. Depois de
quebrar a promessa de não ingressar na política, Di Pietro virou um herói
nacional efêmero, mais popular que o Papa. Mas a queda do céu ao inferno, de
ambos, foi abrupta.
Di Pietro foi ministro, senador, deputado e fundou o próprio
partido. Envolvido em escândalos de malversação de fundos foi condenado pelo
Tribunal de Roma. De mãos sujas, abandonou a própria legenda. A “mani pulite”
entronizou Silvio Berlusconi no poder por anos. O fascismo italiano, como aqui,
tem sua etimologia em operações assinaladas por excessos, abusos em prisões
preventivas, espetacularização midiática, seletividade, perseguições e ruptura
com alicerces da Democracia. É insano achar que repetindo os mesmos erros
haveria resultados diferentes.
Nos litígios políticos, sem a pena de Curitiba, Moro foi
moído, depois enxotado. Acumulou derrotas. Perdeu o poder de bisbilhotar no
COAF, foi derrotado na cruzada contra a lei para punir abuso das autoridades, o
pacote anticrime e seus juízos antidemocráticos foi desmontado, anulou-se o
acordo de R$ 2,5 bi da Petrobrás com lava jato, teve sentenças reformadas no
STF, não emplacou a CPI da toga em 3 tentativas de emparedar os ministros, não
indicou um procurador amigo para PGR, perdeu a tese da prisão após a 2
instância e a “Moro de saias”, ex-senadora Selma Arruda, foi cassada por caixa
2. Sérgio Moro teria intercedido por ela no TSE.
A conduta de Sérgio Moro como magistrado, a exemplo dos
tribunais do Santo Ofício, fundiu deliberadamente as figuras do acusador e do
julgador, corrompendo ambos. Como político, tornou-se alvo do ovo da serpente
que ajudou a chocar. Tenta se reposicionar como iluminista, mas o legado remete
ao terror francês, onde processos precários e genéricos levaram à degolas.
Iniciado com a realeza absolutista – o rei Luiz XVI e a rainha Maria Antonieta
-, terminou no pescoço do seu correspondente, ex-ministro da Justiça,
George-Jacques Danton e Maximilien de Robespierre, líder dos Jacobinos e
ideólogo do terrorismo de Estado.
Moro coleciona maus antecedentes dos transgressores. A procuradora Monique Cheker teria dito que “Moro viola sempre o sistema acusatório e é tolerado por seus resultados”. Ao ser expelido da capitania de Bolsonaro se autoincriminou em outra ilegalidade, concussão. Confessou que aceitou o cargo em troca de uma pensão para a família. “Sérgio Moro como juiz é indigno, como político medíocre, como pessoa lamentável”, sentenciou o ex-ministro português, José Sócrates, conhecido antagonista de Moro, que rebateu chamando-o de “criminoso” ao refugar de um debate na TV. Moro, o incorruptível como Robespierre, se aproximou perigosamente do cadafalso mais rápido que Di Pietro.
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