segunda-feira, 4 de maio de 2020

O DÉSPOTA BRASILEIRO

Marcos Strecker, ISTOÉ
Com a demissão forçada do ministro da Justiça, Sergio Moro, na última sexta-feira, 24, o presidente avançou várias casas em seu projeto de aparelhar os órgãos de controle e desvirtuar as instituições autônomas de Estado, tornando-as peças sob seu domínio. O interesse mais imediato é garantir que o inquérito do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre o esquema de ataques à Corte, que entra em fase decisiva, não chegue a seu filho Carlos, o 02. Mas o objetivo é mais amplo.
A exoneração do ícone da luta anticorrupção no País soma-se ao aparelhamento da Polícia Federal, à cooptação do Exército, à militarização da política, ao estímulo de milícias digitais, à afronta contínua ao Congresso e ao Judiciário e ao desprezo pelos valores republicanos. Procura, passo a passo, enfraquecer a democracia, transformando-se em um caudilho tropical.
Na trilha do chavismo
O presidente não é original em suas investidas. Segue os passos do chavismo, ideologia que contaminou a América Latina nos anos 2000, irradiando destruição. O chavismo, como o bolsonarismo, foi gestado como uma aberração ideológica que se infiltra no Estado, recrutando militantes fanáticos. O falecido ditador Hugo Chávez deu uma lição de como enfraquecer a democracia, e agora é seguido por seu pupilo de extrema direita, que já o elogiou. “Chávez é uma esperança para a América Latina e gostaria muito que essa filosofia chegasse ao Brasil. Remete à figura do marechal Castelo Branco. Acho que vai fazer o que os militares fizeram no Brasil em 1964, com muito mais força”, disse o brasileiro em 1999, quando se movimentava no baixo clero da Câmara Federal e o venezuelano começava seu governo. Antes de chegar ao poder, Chávez tentou um golpe de Estado em 1992 junto com outros oficiais. O golpe fracassou, e ele foi preso. Mas conseguiu os holofotes, tornando-se conhecido nacionalmente. Anistiado em 1994, procurou o caminho eleitoral. Eleito em 1998, tomou posse no ano seguinte. A transição rumo à ditadura não demorou. Conseguiu mudar a composição do Tribunal Supremo (a corte superior) para controlá-lo, mudou a estrutura do Exército para manietá-lo, reprimiu os opositores e interferiu na formação do Parlamento. Asfixiou e cerceou a imprensa. Depois de escapar de uma tentativa de golpe, radicalizou a “revolução bolivariana”, utilizando o know-how cubano de espionagem e repressão. Expropriou empresas privadas e extorquiu a estatal de petróleo. A ajuda assistencial aos mais pobres se deu sobre a ruína econômica e o descaso com o drama humanitário. Seu “socialismo do século XXI” incendiou a imaginação da esquerda, mas a ideologia é mambembe. Além do anacronismo de exaltar um regime enterrado junto com a União Soviética, apoiava-se no culto nacionalista de Simón Bolívar — que foi herói das guerras de independência latino-americanas no século XIX, mas defendia o liberalismo. “Nós somos o povo no poder”, disse seu sucessor e atual ditador, Nicolás Maduro.
Biografias similares
As biografias de Chávez e de Bolsonaro são semelhantes. “Agora é o povo no poder”, disse o brasileiro em 19 de abril. Assim como o venezuelano, o presidente cresceu desafiando a corporação. Ganhou fama com o discurso corporativo de recomposição salarial, nos anos 1980, pelo qual foi preso. Nessa época, tentou se aproximar do general Newton Cruz, que chicoteava automóveis nas carreatas que pediam a volta das eleições diretas e era uma das últimas vozes estridentes contra a redemocratização. Insubordinado, Bolsonaro foi processado e afastado da corporação por seu envolvimento no plano “Beco sem saída”, para explodir bombas em unidades militares, de forma a garantir os aumentos e a “assustar” o então ministro do Exército, Leônidas Pires Gonçalves. A tentativa de sublevação ficou no papel, mas valeu a pena. Após escapar da condenação, a notoriedade garantiu um lugar no Congresso, onde defendeu em 1993 o retorno do regime de exceção e o fechamento do próprio Legislativo. Permaneceu 27 anos criando polêmicas e mostrando desempenho pífio — teve apenas dois projetos aprovados.
Assim como Chávez, Bolsonaro chegou ao poder com um discurso antissistema e em meio ao desgaste de governos cercados de corrupção. Exatamente como ocorreu com o venezuelano, usa o ataque aos adversários como combustível para a militância. Seu antipetismo é de conveniência, já que pertenceu à base de sustentação de Lula e Dilma Rousseff. “Chávez não é anticomunista e eu também não sou. Na verdade, não tem nada mais próximo do comunismo do que o meio militar. Nem sei quem é comunista hoje em dia”, disse em 1999. Mais tarde, disse que havia “se enganado” na avaliação do venezuelano, mas a paixão por autocratas é legítima. Defendeu Alberto Fujimori (“um homem digno”), Augusto Pinochet (“matou baderneiros”) e Alfredo Stroessner (“homem de visão”). Já a cruzada neopopulista tem a ver com a tentativa de surfar na onda da direita alternativa americana, alimentada pelos supremacistas brancos, que garantiu a eleição de Donald Trump — de quem tenta se aproximar. Num sinal quase cômico de emulação, promove Olavo de Carvalho como uma versão abrasileirada de Steve Bannon, articulador da “alt right”. Em seu sonho de formar uma rede neoconservadora mundial, Bolsonaro também sonha imitar o húngaro Victor Orbán, que aproveitou a pandemia para impor medidas de exceção em seu país.
Escalada armamentista
Como o Brasil acompanha diariamente, a marcha da insensatez bolsonarista segue a trilha da ditadura bolivariana: militarização da política, politização do Exército, escalada armamentista e recrutamento de milícias — desarmadas, por enquanto. Uma das críticas que Bolsonaro fez ao demitir Sergio Moro foi exatamente de que o ex-juiz é “desarmamentista”. A simbologia do uso da força é vital para o clã Bolsonaro, assim como ocorre nas ditaduras. Os exemplos são diários. No 19 de abril, quando o presidente fez seu discurso em frente ao QG do Exército para manifestantes que pediam o fechamento do Congresso e do STF, o filho Carlos Bolsonaro exibiu em seu Twitter um vídeo de atiradores descarregando suas armas em um estande de tiros, enquanto exaltavam seu pai aos berros.
Carluxo é justamente o mentor dos milicianos virtuais que, desde as eleições em 2018, dedicam-se ao assassinato de reputações dos opositores do pai. A rede continua ativa, como investiga a PF e a CPMI das Fake News, no Congresso — também alvo dos Bolsonaros. E os perfis que seguem a orientação de Carluxo já apontaram a mira para Moro, depois que este acusou Bolsonaro de tentar interferir na Polícia Federal. O próprio Bolsonaro, na terça-feira, 28, quando indicou o substituto de Moro e o novo representante do clã na chefia da PF, divulgou uma foto em que aparece em um estande de tiro comemorando sua pontaria. “Dez tiros, o pior foi oito, tá bom, né?”, afirmou rindo. Tinha razões para estar satisfeito. Simbolicamente, abateu o símbolo da Lava Jato, depois de apropriar-se da sua bandeira anticorrupção.
Para Bolsonaro, tirar Moro do caminho também facilitou seu projeto de desmembrar o Ministério da Justiça, recriando o Ministério da Segurança Pública. Conta com isso para ampliar sua influência sobre as polícias militares estaduais. O avanço armamentista também fez Bolsonaro intervir no Exército. Exigiu que fossem revogadas portarias que definiam regras de rastreamento de armas, munições e explosivos. Como consequência, o general de Brigada Eugênio Pacelli Vieira Mota, responsável pelas portarias, deixou o cargo de diretor de fiscalização de Produtos Controlados pelo Exército (PCE). Para o País, é uma temeridade. Esse projeto de Bolsonaro aumenta a preocupação sobre o controle de grupos armados e facções criminosas. Ele avança exatamente quando o Ministério Público Estadual do Rio de Janeiro aponta indícios de que o senador Flávio Bolsonaro teria financiado construções de imóveis regulares em áreas controladas por milicianos. Essa ligação é antiga. O 01 já condecorou o ex-policial Adriano da Nóbrega, acusado de ser um dos chefes da milícia de Rio das Pedras e do Escritório do Crime, um grupo de matadores de aluguel.
Eliminando rivais
Como no bonapartismo, o presidente sonha em receber o mandato do povo para governar de forma despótica sem precisar curvar-se a qualquer instituição ou pessoa. Quer eliminar rivais, como ocorreu no afastamento do gestor do combate à pandemia que lhe fazia sombra, o ex-ministro Luiz Henrique Mandetta, e também com Moro, que é mais popular e tem mais credibilidade do que ele. Segue o mesmo curso ao enfraquecer o superministro da Economia, Paulo Guedes, e também ao patrocinar ataques virtuais à sua secretária da Cultura, Regina Duarte, e a uma elogiada ministra técnica, Tereza Cristina, titular da Agricultura — ironicamente, à frente do único setor que deve registrar crescimento em 2020. Jair Bolsonaro encolhe o governo para que ele caiba em sua estatura.
Chávez e Bolsonaro são versões atuais do que o escritor Umberto Eco descreveu como o “Fascimo Primordial”, inspirado em suas memórias de infância na Itália da Segunda Guerra. A tese foi exposta em uma conferência na Universidade Columbia, em 1995, e publicada no Brasil como O Fascismo Eterno (ed. Record). Para o autor, Mussolini expressou um totalitarismo confuso, uma colagem de diferentes ideias filosóficas e políticas. Fraco ideologicamente, não tinha uma filosofia própria, mas apenas retórica. A base do nazismo, primo do fascismo, era constituída pela teoria racista da superioridade ariana. Enxergava a cultura como instrumento de propaganda e tinha horror à criatividade e à modernidade. O stalinismo, a vertente soviética, foi fundada no materialismo. As características desses movimentos estão presentes nas ideologias de Chávez e Bolsonaro: são militaristas, intolerantes à crítica, obcecados com teorias conspiratórias, machistas, homofóbicos e desconfiados do mundo intelectual e científico. Os dois líderes sul-americanos chegaram ao poder após eleições diretas, para em seguida aparelhar o Estado, minar a democracia, calar a imprensa e reprimir os adversários. São unidos pelo ideal autoritário. O bolsonarismo é igual ao chavismo, com o sinal trocado.
“Chávez é uma esperança para a América Latina e gostaria muito que essa filosofia chegasse ao Brasil. Remete à figura do marechal Castelo Branco. Acho que vai fazer o que os militares fizeram no Brasil em 1964, com muito mais força” Jair Bolsonaro, em 1999
Felizmente o presidente tem sido limitado pelo sistema democrático de freios e contrapesos em funcionamento desde a volta do poder aos civis. Agora, foi contido pelo STF na sua tentativa de indicar para a chefia da PF um amigo do filho que estava na mira da própria corte. Fez isso mesmo sabendo que havia o risco de ser impedido pelo Judiciário. Enquanto as instituições estiverem funcionando e puderem coibi-lo, a democracia estará preservada. Mas seu ímpeto autoritário não tem limites. Depois de Alexandre Ramagem, amigo de Carluxo, ter sido barrado, Bolsonaro disse que o País esteve à beira de “uma crise institucional”. Não vai desistir, deixou claro. “Eu quero o Ramagem lá. É uma ingerência, né?” Contrariando a decisão da Advocacia-Geral da União (AGU), órgão da própria Presidência que divulgou nota afirmando que não recorreria da decisão (de forma republicana), expôs como deseja liderar o País. “Quem manda sou eu”, disse. É uma daquelas frases que resume tudo, como “a Constituição sou eu”, dita há poucos dias. É necessário manter a vigilância. Interpretando os sinais do tempo, é possível dizer que o “ovo da serpente” ainda está sendo chocado — parafraseando o título do clássico filme de Ingmar Bergman sobre a lenta gênese nazista. Está sim, diante dos nossos olhos.
O bolsonarismo é igual ao chavismo, com sinal trocado. Os dois representam movimentos militaristas, intolerantes à crítica, obcecados com teorias conspiratórias e desconfiados do mundo intelectual e científico
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