Com a demissão forçada do ministro da Justiça, Sergio Moro,
na última sexta-feira, 24, o presidente avançou várias casas em seu projeto de
aparelhar os órgãos de controle e desvirtuar as instituições autônomas de
Estado, tornando-as peças sob seu domínio. O interesse mais imediato é garantir
que o inquérito do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre o esquema de ataques à
Corte, que entra em fase decisiva, não chegue a seu filho Carlos, o 02. Mas o
objetivo é mais amplo.
A exoneração do ícone da luta anticorrupção no País soma-se
ao aparelhamento da Polícia Federal, à cooptação do Exército, à militarização
da política, ao estímulo de milícias digitais, à afronta contínua ao Congresso
e ao Judiciário e ao desprezo pelos valores republicanos. Procura, passo a
passo, enfraquecer a democracia, transformando-se em um caudilho tropical.
Na trilha do chavismo
O presidente não é original em suas investidas. Segue os
passos do chavismo, ideologia que contaminou a América Latina nos anos 2000,
irradiando destruição. O chavismo, como o bolsonarismo, foi gestado como uma
aberração ideológica que se infiltra no Estado, recrutando militantes
fanáticos. O falecido ditador Hugo Chávez deu uma lição de como enfraquecer a
democracia, e agora é seguido por seu pupilo de extrema direita, que já o
elogiou. “Chávez é uma esperança para a América Latina e gostaria muito que
essa filosofia chegasse ao Brasil. Remete à figura do marechal Castelo Branco.
Acho que vai fazer o que os militares fizeram no Brasil em 1964, com muito mais
força”, disse o brasileiro em 1999, quando se movimentava no baixo clero da
Câmara Federal e o venezuelano começava seu governo. Antes de chegar ao poder,
Chávez tentou um golpe de Estado em 1992 junto com outros oficiais. O golpe
fracassou, e ele foi preso. Mas conseguiu os holofotes, tornando-se conhecido
nacionalmente. Anistiado em 1994, procurou o caminho eleitoral. Eleito em 1998,
tomou posse no ano seguinte. A transição rumo à ditadura não demorou. Conseguiu
mudar a composição do Tribunal Supremo (a corte superior) para controlá-lo,
mudou a estrutura do Exército para manietá-lo, reprimiu os opositores e
interferiu na formação do Parlamento. Asfixiou e cerceou a imprensa. Depois de
escapar de uma tentativa de golpe, radicalizou a “revolução bolivariana”,
utilizando o know-how cubano de espionagem e repressão. Expropriou empresas
privadas e extorquiu a estatal de petróleo. A ajuda assistencial aos mais
pobres se deu sobre a ruína econômica e o descaso com o drama humanitário. Seu
“socialismo do século XXI” incendiou a imaginação da esquerda, mas a ideologia
é mambembe. Além do anacronismo de exaltar um regime enterrado junto com a
União Soviética, apoiava-se no culto nacionalista de Simón Bolívar — que foi
herói das guerras de independência latino-americanas no século XIX, mas
defendia o liberalismo. “Nós somos o povo no poder”, disse seu sucessor e atual
ditador, Nicolás Maduro.
Biografias similares
As biografias de Chávez e de Bolsonaro são semelhantes.
“Agora é o povo no poder”, disse o brasileiro em 19 de abril. Assim como o
venezuelano, o presidente cresceu desafiando a corporação. Ganhou fama com o
discurso corporativo de recomposição salarial, nos anos 1980, pelo qual foi
preso. Nessa época, tentou se aproximar do general Newton Cruz, que chicoteava
automóveis nas carreatas que pediam a volta das eleições diretas e era uma das
últimas vozes estridentes contra a redemocratização. Insubordinado, Bolsonaro
foi processado e afastado da corporação por seu envolvimento no plano “Beco sem
saída”, para explodir bombas em unidades militares, de forma a garantir os
aumentos e a “assustar” o então ministro do Exército, Leônidas Pires Gonçalves.
A tentativa de sublevação ficou no papel, mas valeu a pena. Após escapar da
condenação, a notoriedade garantiu um lugar no Congresso, onde defendeu em 1993
o retorno do regime de exceção e o fechamento do próprio Legislativo.
Permaneceu 27 anos criando polêmicas e mostrando desempenho pífio — teve apenas
dois projetos aprovados.
Assim como Chávez, Bolsonaro chegou ao poder com um discurso
antissistema e em meio ao desgaste de governos cercados de corrupção.
Exatamente como ocorreu com o venezuelano, usa o ataque aos adversários como
combustível para a militância. Seu antipetismo é de conveniência, já que
pertenceu à base de sustentação de Lula e Dilma Rousseff. “Chávez não é
anticomunista e eu também não sou. Na verdade, não tem nada mais próximo do
comunismo do que o meio militar. Nem sei quem é comunista hoje em dia”, disse
em 1999. Mais tarde, disse que havia “se enganado” na avaliação do venezuelano,
mas a paixão por autocratas é legítima. Defendeu Alberto Fujimori (“um homem
digno”), Augusto Pinochet (“matou baderneiros”) e Alfredo Stroessner (“homem de
visão”). Já a cruzada neopopulista tem a ver com a tentativa de surfar na onda
da direita alternativa americana, alimentada pelos supremacistas brancos, que
garantiu a eleição de Donald Trump — de quem tenta se aproximar. Num sinal
quase cômico de emulação, promove Olavo de Carvalho como uma versão
abrasileirada de Steve Bannon, articulador da “alt right”. Em seu sonho de
formar uma rede neoconservadora mundial, Bolsonaro também sonha imitar o
húngaro Victor Orbán, que aproveitou a pandemia para impor medidas de exceção
em seu país.
Escalada armamentista
Como o Brasil acompanha diariamente, a marcha da insensatez
bolsonarista segue a trilha da ditadura bolivariana: militarização da política,
politização do Exército, escalada armamentista e recrutamento de milícias —
desarmadas, por enquanto. Uma das críticas que Bolsonaro fez ao demitir Sergio
Moro foi exatamente de que o ex-juiz é “desarmamentista”. A simbologia do uso
da força é vital para o clã Bolsonaro, assim como ocorre nas ditaduras. Os
exemplos são diários. No 19 de abril, quando o presidente fez seu discurso em
frente ao QG do Exército para manifestantes que pediam o fechamento do
Congresso e do STF, o filho Carlos Bolsonaro exibiu em seu Twitter um vídeo de
atiradores descarregando suas armas em um estande de tiros, enquanto exaltavam
seu pai aos berros.
Carluxo é justamente o mentor dos milicianos virtuais que,
desde as eleições em 2018, dedicam-se ao assassinato de reputações dos
opositores do pai. A rede continua ativa, como investiga a PF e a CPMI das Fake
News, no Congresso — também alvo dos Bolsonaros. E os perfis que seguem a
orientação de Carluxo já apontaram a mira para Moro, depois que este acusou
Bolsonaro de tentar interferir na Polícia Federal. O próprio Bolsonaro, na
terça-feira, 28, quando indicou o substituto de Moro e o novo representante do
clã na chefia da PF, divulgou uma foto em que aparece em um estande de tiro
comemorando sua pontaria. “Dez tiros, o pior foi oito, tá bom, né?”, afirmou
rindo. Tinha razões para estar satisfeito. Simbolicamente, abateu o símbolo da
Lava Jato, depois de apropriar-se da sua bandeira anticorrupção.
Para Bolsonaro, tirar Moro do caminho também facilitou seu
projeto de desmembrar o Ministério da Justiça, recriando o Ministério da
Segurança Pública. Conta com isso para ampliar sua influência sobre as polícias
militares estaduais. O avanço armamentista também fez Bolsonaro intervir no
Exército. Exigiu que fossem revogadas portarias que definiam regras de
rastreamento de armas, munições e explosivos. Como consequência, o general de Brigada
Eugênio Pacelli Vieira Mota, responsável pelas portarias, deixou o cargo de
diretor de fiscalização de Produtos Controlados pelo Exército (PCE). Para o
País, é uma temeridade. Esse projeto de Bolsonaro aumenta a preocupação sobre o
controle de grupos armados e facções criminosas. Ele avança exatamente quando o
Ministério Público Estadual do Rio de Janeiro aponta indícios de que o senador
Flávio Bolsonaro teria financiado construções de imóveis regulares em áreas
controladas por milicianos. Essa ligação é antiga. O 01 já condecorou o
ex-policial Adriano da Nóbrega, acusado de ser um dos chefes da milícia de Rio
das Pedras e do Escritório do Crime, um grupo de matadores de aluguel.
Eliminando rivais
Como no bonapartismo, o presidente sonha em receber o
mandato do povo para governar de forma despótica sem precisar curvar-se a
qualquer instituição ou pessoa. Quer eliminar rivais, como ocorreu no
afastamento do gestor do combate à pandemia que lhe fazia sombra, o ex-ministro
Luiz Henrique Mandetta, e também com Moro, que é mais popular e tem mais
credibilidade do que ele. Segue o mesmo curso ao enfraquecer o superministro da
Economia, Paulo Guedes, e também ao patrocinar ataques virtuais à sua
secretária da Cultura, Regina Duarte, e a uma elogiada ministra técnica, Tereza
Cristina, titular da Agricultura — ironicamente, à frente do único setor que
deve registrar crescimento em 2020. Jair Bolsonaro encolhe o governo para que
ele caiba em sua estatura.
Chávez e Bolsonaro são versões atuais do que o escritor Umberto
Eco descreveu como o “Fascimo Primordial”, inspirado em suas memórias de
infância na Itália da Segunda Guerra. A tese foi exposta em uma conferência na
Universidade Columbia, em 1995, e publicada no Brasil como O Fascismo Eterno
(ed. Record). Para o autor, Mussolini expressou um totalitarismo confuso, uma
colagem de diferentes ideias filosóficas e políticas. Fraco ideologicamente,
não tinha uma filosofia própria, mas apenas retórica. A base do nazismo, primo
do fascismo, era constituída pela teoria racista da superioridade ariana.
Enxergava a cultura como instrumento de propaganda e tinha horror à
criatividade e à modernidade. O stalinismo, a vertente soviética, foi fundada
no materialismo. As características desses movimentos estão presentes nas ideologias
de Chávez e Bolsonaro: são militaristas, intolerantes à crítica, obcecados com
teorias conspiratórias, machistas, homofóbicos e desconfiados do mundo
intelectual e científico. Os dois líderes sul-americanos chegaram ao poder após
eleições diretas, para em seguida aparelhar o Estado, minar a democracia, calar
a imprensa e reprimir os adversários. São unidos pelo ideal autoritário. O
bolsonarismo é igual ao chavismo, com o sinal trocado.
“Chávez é uma esperança para a América Latina e gostaria
muito que essa filosofia chegasse ao Brasil. Remete à figura do marechal
Castelo Branco. Acho que vai fazer o que os militares fizeram no Brasil em
1964, com muito mais força” Jair Bolsonaro, em 1999
Felizmente o presidente tem sido limitado pelo sistema democrático
de freios e contrapesos em funcionamento desde a volta do poder aos civis.
Agora, foi contido pelo STF na sua tentativa de indicar para a chefia da PF um
amigo do filho que estava na mira da própria corte. Fez isso mesmo sabendo que
havia o risco de ser impedido pelo Judiciário. Enquanto as instituições
estiverem funcionando e puderem coibi-lo, a democracia estará preservada. Mas
seu ímpeto autoritário não tem limites. Depois de Alexandre Ramagem, amigo de
Carluxo, ter sido barrado, Bolsonaro disse que o País esteve à beira de “uma
crise institucional”. Não vai desistir, deixou claro. “Eu quero o Ramagem lá. É
uma ingerência, né?” Contrariando a decisão da Advocacia-Geral da União (AGU),
órgão da própria Presidência que divulgou nota afirmando que não recorreria da
decisão (de forma republicana), expôs como deseja liderar o País. “Quem manda
sou eu”, disse. É uma daquelas frases que resume tudo, como “a Constituição sou
eu”, dita há poucos dias. É necessário manter a vigilância. Interpretando os
sinais do tempo, é possível dizer que o “ovo da serpente” ainda está sendo
chocado — parafraseando o título do clássico filme de Ingmar Bergman sobre a
lenta gênese nazista. Está sim, diante dos nossos olhos.
O bolsonarismo é igual ao chavismo, com sinal trocado.
Os dois representam movimentos militaristas, intolerantes à crítica,
obcecados com teorias conspiratórias e desconfiados do mundo
intelectual e científico
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