Os meios de comunicação já registraram e continuam
registrando uma das condutas mais frequentes exibidas pelo atual presidente da
República, qual seja, seu descaso pelo regime democrático. Com efeito, eles já
exibiram suas manifestações de enaltecimento do período ditatorial, de
intimidação dos jornalistas e de admiração a um militar comprometido com a
tortura.
A mais recente aconteceu em frente a um quartel do Exército,
onde discursou perante um grupo de seguidores que propunham a intervenção dos
militares, a edição de um novo AI-5 e o fechamento do Supremo Tribunal Federal
e do Congresso Nacional.
O episódio revelou a existência de posições diferentes
assumidas pelos militares. Um grupo se mostrou totalmente contra, porquanto tal
evento serviu para provocar mais a ira dos parlamentares e dos membros do
Judiciário, constituiu uma provocação desnecessária, aconteceu em local
inapropriado, mostrou-se negativo para a imagem das Forças Armadas e expôs uma
gravidade simbólica pelo fato de que o presidente é o seu comandante. O grupo
instalado no governo considerou natural a braveza do presidente, uma vez que o
Parlamento tem cerceado as iniciativas presidenciais e o Supremo Tribunal
Federal favoreceu os governadores e prefeitos no combate à pandemia.
Por sua vez, o ministro da Defesa, respaldado pelos
comandantes da Marinha, do Exército e da Aeronáutica, emitiu uma nota em que
destaca apenas que as Forças Armadas obedecem incondicionalmente à Constituição
federal e que no momento elas se encontram bastante empenhadas no combate ao
coronavírus.
Note-se que o conjunto dos discordantes não teve a
preocupação de fazer uma vigorosa condenação a um movimento atentatório ao
regime democrático. Os palacianos, apesar de em várias ocasiões terem
contribuído para moderar a conduta do presidente, além de não o desaprovarem,
mostraram-se condescendentes, pois o consideram refratário a qualquer ruptura
da ordem democrática. Observe-se que essa atitude pode ser interpretada como
uma licença para ele continuar cometendo atos reprováveis. O comunicado do
Ministério da Defesa traz um conteúdo aligeirado e inclinado para o lado da
indiferença, porquanto nem faz referência à manifestação daquele domingo.
Esse comunicado faz lembrar a ordem do dia pertinente ao 31
de Março, a qual expõe que aquele movimento foi um marco para a democracia
brasileira porque se constituiu numa reação às ameaças que pairavam sobre ela.
Destarte contém a postura de defesa do regime democrático, a qual não é
visualizada no comunicado mencionado. Considerando que nossa Constituição
atribui às Forças Armadas a defesa da democracia, o comunicado poderia ter
lembrado o evento e exibido uma clara e indubitável posição a favor dela.
O alvitre de não incluir as duas propostas provavelmente se
deve ao anseio de firmar uma posição de neutralidade das Forças Armadas perante
os eventos políticos. Essa suposição também encontra ressonância na ordem do
dia relativa ao citado Movimento de 31 de Março, pois nela se encontra
registrado que as Forças Armadas visam apenas o cumprimento de sua missão
constitucional. Ressalte-se que a tentativa de solidificar uma postura
indeterminada pode gerar a interpretação entre os civis de que as instituições
castrenses estão aprovando as manifestações contra os Poderes constituídos.
A opção pela neutralidade não se revela apropriada, uma vez
que é praticamente impossível sustentá-la porque se baseia num pressuposto
bastante efêmero. O comportamento neutro é uma das questões mais difíceis e
controversas postas para a ciência e a filosofia resolverem. E pelo que se sabe
até o momento, não foi produzida nenhuma resposta consistente para ela.
Há ainda um complicador relacionado à nossa História, o qual
se mostra como um obstáculo muito poderoso. Durante várias décadas, desde a
Proclamação da República, o destino do País manteve-se intimamente atrelado aos
quartéis. Foi governado por soldados durante um bom tempo e atualmente um
servidor fardado da reserva se encontra no comando da Nação, após uma acirrada
campanha eleitoral que envolveu muitos militares, dentre os quais alguns se
encontram ocupando os principais cargos do governo.
Considerando que ainda não emergiu uma solução coerente
viabilizadora da atitude de neutralidade, que a pretensão de tentar garantir a
neutralidade das Forças Armadas não se coaduna com seu papel constitucional e
que o apego à ideia de neutralidade dos estabelecimentos castrenses tende a
contribuir para alimentar a desconfiança dos paisanos em relação aos militares,
é possível inferir que o Ministério da Defesa deveria ter citado e condenado a
manifestação, bem como recomendado ao Judiciário a abertura de um processo
investigatório para identificar seus organizadores e financiadores.
PROFESSOR APOSENTADO DA ACADEMIA DA FORÇA
AÉREA, PÓS-DOUTOR EM EDUCAÇÃO PELA USP, É AUTOR DE ‘DEMOCRACIA E ENSINO
MILITAR’ (CORTEZ) E ‘A REFORMA DO ENSINO MÉDIO E A FORMAÇÃO PARA A
CIDADANIA’ (PONTES)
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