A saída de Teich informa que até a inexistência individual
tem limites; e que mesmo um inexistente — cujo contrato para ser ministro consistia
em não ser sujeito —pode ter alguma espinha dorsal.
Teich teve, afinal. Alguém se deve ter orgulhado. Não os que
percebem que seus dias na pasta se somam aos outros tantos, consumidos pela
batalha que resultaria na queda de Mandetta, no curso dos quais o ministério
esteve paralisado; isto em meio ao totalitarismo de um vírus cuja sanha
configura a peste.
A contribuição de Teich ao país seria nenhuma se o papel que
aceitou cumprir não tivesse ampliado o campo a que o chefe expusesse o
autoritarismo por meio do qual exerce a atividade executiva na República: o
presidente que quer e que, porque quer, terá; no caso, o protocolo para
utilização da hidroxicloroquina expandido a pacientes sob infecção leve.
A lacuna Teich comunica que somente Bolsonaro pode ser
ministro da Saúde de Bolsonaro. A ver apenas quem — explorando nova fronteira
para flexibilização de vértebras morais — lhe será o cavalo. Não é muito
diferente da vontade que se move para interferir na PF. A saída de Moro
comunicou que somente Bolsonaro poderia ser a polícia política de Bolsonaro.
Repito: o presidente está trocando de pele, inaugurando um
governo que se liberta da carcaça narrativa eleitoral, num processo de
radicalização acelerado pela janela de oportunidades escancarada pela Covid-19.
Há também, insisto, a mudança de base social: a aposta bolsonarista em
compensar a perda de apoio na classe média com a conquista das camadas
populares.
Dos pilares artificiais que tornaram Bolsonaro persona
eleitoral consumível só resta o liberalismo econômico guedista; o que avaliou
ser possível, em nome das reformas, liquefazer a coluna vertebral do
liberalismo político para se associar ao populismo autocrático bolsonarista —
um projeto de poder reacionário de pulsão para a ruptura, revolucionário mesmo,
comandado por um elemento que é o centro gerador de conflitos e cujo palácio,
um sindicato de servidores públicos, está fundamentado em variáveis daquilo em
que ele mesmo, o presidente, consiste: um militante de interesses corporativos.
Já era um arranjo de sucesso improvável em tempos de paz —
esse entre reformas liberais e desestabilizações bolsonaristas. O que dizer de
agora, e doravante, com o vento virado?
Bolsonaro é instabilidade. Se há crise, ele será o
multiplicador de imprevisibilidade. Reagirá radicalizando. É o que está em
curso. O vento virou — e é vento que lhe enche a vela e o impulsiona a ser
plenamente o que é. Em matéria econômica, para tornar Guedes e o que representa
prescindíveis (antes do esperado).
O Bolsa Jair já se espraia, a própria âncora da mudança de
base social, alcançando milhões de brasileiros pobres, muitos dos quais até
então invisíveis ao Estado, inclusive no Nordeste, onde o presidente não
conseguia penetrar. São milhões de outrora inexistentes incorporados por um programa
de auxílio emergencial — milhões também de novos títulos de eleitor mapeados
pelo surgimento de uma ajuda, a do Jair, temporária. Temporária?
A tentação é grande, e o mar puxa para o afogamento do teto
de gastos.
O vento virado — para o projeto liberal guedista — é o que
traz uma nova convenção social, que descarta o pacto por austeridade fiscal em
prol da demanda por que o Estado injete dinheiro na economia e sustente
artificialmente o setor produtivo e aqueles cuja parca renda foi aterrada. O
milagre bolsonarista?
Há quem diga que Guedes fica por ser mais parecido com o
chefe do que se gostaria de admitir. Não se trataria de elogio, a essa
semelhança contribuindo a noção de democrata segundo o ministro, capaz de
abranger até o presidente. Guedes vai ficando. Sua agenda, porém, comprometida.
Talvez fatalmente. A favor de sua permanência, ainda que de norte fulminado,
pesando a avaliação de que Bolsonaro não poderia se dar ao luxo de perder —
hoje — esse derradeiro estribo de credibilidade narrativa. Que usa bem.
Penso na reunião virtual havida, na quinta última, com um
grupo de empresários graúdos. A repercussão jornalística da conversa definiu-a
como desprovida de propostas da parte do presidente; um erro de leitura grave.
A proposta houve — e claríssima, doutorada pela presença de Guedes: para que
aqueles cidadãos enfrentassem, em guerra, as medidas restritivas decretadas,
particularmente, por João Doria. O presidente pregando a desobediência civil.
Avalizada pela ciência de Guedes, a proposta de Bolsonaro
para a crise — um plano de enfrentamento do enfrentamento à pandemia — nem
sequer vagamente tem a reação da economia como centro de preocupação; mas o
estímulo à reação de grupos de pressão, que vão dos caminhoneiros aos donos das
cargas, passando por milicianos dentro das polícias, contra os decretos dos
governadores.
Está acelerado. Vai piorar. Dá-lhe lustro quem concorda.
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