Ninguém se torna ditador de um dia para o outro. Em primeiro
lugar, precisa desacreditar o regime democrático e o sistema representativo.
Depois de insuflar as massas insatisfeitas contra a democracia e os
representantes eleitos, o líder populista procura demolir as instituições e
tudo o mais que impõe limites entre a sua vontade e a submissão do povo ao seu
desejo de poder absoluto, transmutado em mito. O terceiro passo é angariar
recursos de poder, apoio financeiro de setores das classes dominantes, e armar
seus seguidores. Tudo isso em nome da liberdade do povo, supostamente usurpada por
autoridades legitimamente constituídas.
Jair Bolsonaro costuma citar a Venezuela como o perfil
preferido de seus adversários dentro e fora do País. As evidências de sua
conduta política mostram, entretanto, que ele está, ao contrário, seguindo a
cartilha bolivariana com certa persistência.
É longa a transmutação de um líder político, eleito por voto
popular, em figura mítica onipotente. Hugo Chávez, depois do fracasso de sua
tentativa de golpe armado, deu um primeiro grande passo revogando a Constituição
venezuelana e adotando uma Constituinte unilateral. Sua tarefa foi facilitada
pelo boicote de uma oposição moderada muito fragmentada, a tal ponto que
boicotou as eleições. Uma situação muito similar à que se observou entre nós
quando, mesmo diante da radicalização política dos extremistas, as forças
democráticas moderadas nem sequer tentaram se unir contra a ameaça comum.
Seguiram-se a manipulação populista da economia, a cooptação
das Forças Armadas e do setor produtivo, em grande parte estatizado e majoritariamente
corrupto, e a manipulação do câmbio para beneficiar as elites. Apesar disso, e
incapaz de se unir, o pouco que restou da oposição não podia ser tolerado e
Hugo Chávez reinventou a Corte Suprema de Justiça, impondo-lhe a missão de
servir, acima de tudo, à “revolução” bolivariana.
O passo decisivo da ditadura chavista foi dado pela criação,
em 2009, de milícias armadas, a Guardia Civil Bolivariana, encarregada da
defesa contra a crescente organização das oposições e neste ano transformada em
braço oficial das Forças Armadas.
Diferentemente das organizações militares tradicionais, as
milícias são organizadas em grupos armados dentro de empresas e repartições e
em comunidades de residência. São principalmente essas milícias, e não as
Forças Armadas, que efetuam a repressão às manifestações, os sequestros, as
execuções, a invasão e ocupação da Assembleia Nacional, tudo praticado em nome
do socialismo e da liberdade.
A opinião pública brasileira e o debate político estiveram,
nos últimos dias, estupefatos pelo conteúdo perturbador de uma reunião entre as
mais altas autoridades do País. Mas o que essa reunião põe a nu de mais
relevante não é a suposta interferência de Bolsonaro em instituições de
investigação e inteligência. É, sim, o propósito anunciado do presidente de
armar o povo para que o cidadão comum ameace, com armas de fogo, as autoridades
constituídas quando delas discordarem.
Nas palavras do presidente, ouve-se: “Eu peço ao Fernando e
ao Moro que, por favor, assine essa portaria hoje que eu quero dar um p..a de
um recado pra esses b…a. Por quê que eu estou armando o povo” – sendo esses
b…as governadores e prefeitos que não lhe agradam. Não se trata de um caso
isolado. Os insultos ao Parlamento e ao Judiciário estão presentes desde a
campanha eleitoral, tornaram-se pauta normal do presidente desde o fim de 2019
e, agora, agenda dominical do primeiro mandatário e de seu Ministério.
Em maio de 2019 Bolsonaro deu um passo nas pegadas de Chávez
ao propor um pacto com os demais Poderes da República, convidando o Judiciário
a colaborar com as agendas de governo, reiterando que era bom ter a Justiça a
seu lado, quando o que cabe a ela é estar do lado da lei. Mais
significativamente, na sequência da proposta de pacto, após criticar o Supremo
Tribunal Federal por decisões supostamente contrárias às suas convicções
políticas e religiosas, prometeu nomear para a Suprema Corte um evangélico, porque
o Estado pode ser laico, “mas”, ressaltou, “eu sou cristão”.
Faltava, até agora, o modelo de mobilização de fiéis
seguidores, que substituiu o voto popular, para manter no poder o sucessor de
Chávez, derrotado nas eleições para a Assembleia Nacional. Trata-se das
milícias bolivarianas, que o mantêm no poder mediante ataques armados às
manifestações populares, praticam sequestros e execuções e invadem e ocupam o
Parlamento.
Não é à toa que a opinião nacional e o Congresso têm reagido
contra as tentativas do presidente de anular todas as cautelas e restrições ao
acesso universal indiscriminado a armas letais, sob o pretexto de garantir a
segurança dos indivíduos e de suas propriedades. Por trás dessa agenda existe,
como esclarece o próprio Bolsonaro, uma agenda, até agora oculta, de armar seus
fiéis seguidores para que possam resistir com armas na mão contra autoridades
públicas que ousarem contrariar seus desejos e interesses.
*Senador (PSDB-SP)
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