Eu sou cronista
do maior jornal do Brasil e, no entanto, me sinto impossibilitada de
escrever uma crônica. Quando abro qualquer publicação, para ler colunas de
outros escritores, percebo que eles também estão completamente entregues a
artigos de opinião sobre
política e saúde.
Ninguém aguenta mais o verme e o vírus, mas imagina eu usar
este espaço pra falar das árvores, de um amor da adolescência ou de uma tarde
inesquecível em que nada aconteceu? Você, leitor, sentiria alívio, mataria a
saudade do que deveria ser, em essência, uma crônica, ou escreveria ao jornal
me chamando de alienada? Mil
mortos por dia, e eu falando sobre brincar com tatu-bolinha no jardim da
minha avó?
Nas minhas reuniões de roteiro (seja para o cinema, que por
ora nem sequer respira artificialmente; seja para a televisão, que por ora
tenta se reinventar a cada uma das mil videoconferências das quais participo),
nos perguntamos se as pessoas querem assistir ao mundo de antes, ao de agora ou
ao do futuro. E eu me arriscaria a escrever sobre qualquer um desses, se eu
entendesse, minimamente, o que são eles.
Mas voltemos à crônica. Recorro ao meu livro “200 Crônicas
Escolhidas”, do Rubem
Braga, e penso que gostaria de morar nele. Será que você viria comigo? A
primeira vez que ele viu o mar, e o seu amigo explicando a diferença entre mar,
maré e marola. Depois, andar sob a madrugada escura. Cachorros que esperam na
porta. De longe se escuta uma música. O menino rico tem inveja do menino sujo
que canta na rua.
E se um sol iluminasse aquela noite, mas sem corrompê-la? Os
soldados que não podem olhar estrelas porque lembram dos generais. Senhoras
bastante desquitadas. O mundo que era puro, mas triste e sem fim. Em “Almoço
Mineiro”, leio que Poços de Caldas é uma cidade bonita. Então lembro da cama
com uma toalha dobrada em forma de cisne, num hotel muito simples, e da gente
rindo e gostando de tudo.
Eu estava ansiosa, à espera da minha fala em uma feira de
literatura, e resolvemos transar mesmo não sendo o dia certo da tabelinha da
fertilidade. Pois o dia errado me trouxe a Ritinha. Hoje, pra variar, acordei
com a minha
filha me encarando, seus olhos enormes querendo me arrancar o sono.
Pensei que, durante esse confinamento, tenho em minha filha um universo
inteiro.
Agora visito Paulo Mendes Campos. Começo pelo seu texto mais
famoso, “O Amor Acaba”: “[…] acaba no desenlace das mãos no cinema, como
tentáculos saciados […] Como se as mãos soubessem antes que o amor tinha
acabado”. Logo recordo de pés na bunda memoráveis. O mais sofrido foi em uma
lanchonete chamada Bolados Sucos. Ele falando que já tinha “dito tudo por
email”. Eu declarando que o amaria ainda por muito tempo.
E foi o que fiz. Demorou cinco anos pra passar. E por causa
dessa dor eu lancei meu primeiro livro,
aluguei meu primeiro apartamento e viajei sozinha para Paris (que erro!).
Lembro de outro fim terrível. Ele imóvel, distante, fumando,
e eu escavando o seu peito: “Não tem nada aí? Nada?”. Caí de cama e minha mãe
não se conformava: “Sua vida só está começando, pra que sofrer assim?”. Que
saudade da minha mãe (que não vejo há 67 dias).
Da minha vida que estava só começando (ou apenas da minha
vida). De sofrer tanto por coisas boas. Das lanchonetes ridículas, das viagens
erradas, de lançar livros e ver pessoas (não aguento mais fazer live). Saudade
demais do mundo. Socorro, Rubem, Paulo! Vinicius de Moraes, por favor, me diga
que eu não vou bater pino! Eu acordo tarde e gosto demais de brigadeiro.
Tati Bernardi
Escritora e roteirista de cinema e televisão, autora de “Depois a Louca Sou Eu”.
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