quinta-feira, 21 de maio de 2020

UMA SOCIEDADE FUNDADA NO ÓDIO

Cristiano Romero, Valor Econômico

Somos uma sociedade fundada no ódio não às minorias, mas à maioria

Uma medida da dificuldade que o Brasil tem para modernizar sua economia é o fato de nunca termos concluído as chamadas “reformas” estruturais. Com exceção dos períodos de bonança, o tema sempre esteve presente na agenda nacional desde a década de 1950. No plano simbólico, a imagem é a de um país cuja sociedade, de tão desigual na origem e no caminhar da história, não chega a consensos mínimos, o que dificulta sobremaneira a construção de uma nação. E, sem que nos reconheçamos no outro, característica fundamental de qualquer nação, jamais vamos superar as desigualdades que nos definem desde sempre e nos prendem a um binômio perverso – o de ser um país rico, porém, pobre.

Quando, em outubro de 1979, o senador Ted Kennedy decidiu disputar as eleições primárias do partido Democrata para ter o direito de se candidatar à Presidência dos Estados Unidos, ele justificou desta maneira, em entrevista à rede CBS, seu interesse em comandar o país mais rico do mundo: “As razões que me fariam concorrer são porque eu acredito neste país. Isto é, há aqui mais recursos naturais do que em qualquer nação do mundo; temos a população mais educada, a melhor tecnologia, a maior capacidade de inovação e o melhor sistema político no mundo”.

A história não foi generosa com o irmão mais novo de John Kennedy. Ted perdeu as primárias para o incumbente, o então presidente Jimmy Carter, e este perdeu a eleição para o desafiante do partido Republicano, Ronald Reagan.

Assim como os Estados Unidos, a Ilha de Vera Cruz é riquíssima em recursos naturais. Se não bastasse toda a riqueza que se conhece há mais de um ou dois séculos, segue descobrindo novos ouros, exatamente como fazem os americanos. Um exemplo: o gás de xisto lá, que tornou os EUA auto-suficientes em petróleo, e a abundante reserva da mesma matéria-prima que encontramos na camada pré-sal da nossa costa. Não são muitos os países premiados pela natureza como o Brasil e os EUA.

Mas, e daí? Este país tem a maior floresta tropical do planeta, a Amazônica, que cobre 45% do nosso território, o 4º maior do mundo.

Todos, leigos e cientistas, sabemos que essa floresta encerra tesouros que tornam indigno o fato de os ribeirinhos sofrerem, ao longo do curso do rio mais caudaloso do globo, dos males da fome, do desamparo, enfim, da pobreza. No entanto, o que realmente nos impede de alcançar o futuro não é a suposta baixa exploração de nossos recursos naturais, mas os outros fatores mencionados por Ted Kennedy – elevado grau de escolaridade da população, tecnologia e alta capacidade de inovação.

Estes fatores não existem por aqui porque somos uma sociedade fundada no ódio não às minorias, mas à maioria. Reside na Ilha de Vera Cruz o maior desafio da humanidade no que diz respeito à construção de uma nação. Fizeram da nossa fortuna – a diversidade étnica – uma maldição.

Durante quase 400 dos 520 anos desde a chegada dos “colonizadores” europeus, os ricos iam ao mercado fazer a feira da semana, adquirir bens importados e… comprar gente. Sim, trocar dinheiro por seres humanos. Estes tinham várias utilidades: trabalhar na lavoura, cozinhar, arrumar a casa, fazer faxina, entregar seus corpos ao deleite dos “donos”.

Com isso, subvertemos nossa natureza naquilo que lhe é mais caro: a liberdade. Jamais aceitamos, como sociedade, o fim da escravidão.

Para não pagar salários a escravos alforriados, importamos mão de obra da Europa e do Japão e empurramos para a marginalidade milhões de brasileiros (não nos esqueçamos que os escravos estão aqui há tanto tempo quanto os “colonizadores”, embora com uma diferença: não vieram a Cabrália empreender, mas, sim, como mercadoria; eram números na balança comercial e o principal fator de acumulação de capital).

Vem daí a dificuldade em termos uma economia competitiva. Nossos antepassados foram de uma perversidade indizível ao privar do acesso à educação gerações e mais gerações de brasileiros. E o fizeram porque, para eles, era inaceitável – e ainda é – educar “escravos”.

A mão de obra importada de países como Itália, Alemanha e Japão, por sua vez, começaram a reagir a péssimas condições de trabalho oferecidas por aqui. Assim, as famílias abonadas começaram a reempregar os ex-escravos na lavoura, nas residências, nas casas de serviços íntimos, a escambo e salário indigno. É a escravidão 2.0, a mais difícil de se combater – todos já escutamos a mais cínicas das justificativas: “Olha, tenho duas empregadas porque quero ajudá-las, do contrário, elas passam fome”. A homofobia, dentre tantas outras formas de discriminação, usa os óculos da escravidão.

Não se tenha dúvida: depois da passagem da pandemia, estaremos piores: mais pobres, mais desiguais, mais longe do futuro. E com um Estado quebrado, retornando à estaca zero no que diz respeito à sua capacidade de atender os mais desfavorecidos.

Esta é a quarta coluna dedicada a relatar e discutir o passado recente da história econômica do país. O objetivo é humildemente tentar entender onde estamos, uma vez que, há sete anos, nosso PIB parece preso numa espécie de areia movediça.

Na próxima semana, tem mais, mas, antes, um registro para mostrar como o patrimonialismo, isto é, o hábito secular de grupos sociais de ver a coisa pública como algo que lhes pertença, é uma característica mais forte entre nós do que o populismo: 30 anos depois do Plano Collor, congressistas e Judiciário ainda tomam medidas para compensar servidores públicos que, sem estabilidade constitucional, foram demitidos na ocasião.

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