Já não é notícia. Bolsonaro foi infectado (foi?) pelo vírus
traiçoeiro. Aproveitou para vender remédio, cujos efeitos curadores — esperados
quando sobre um físico com memória de atleta —se teriam verificado em algo como
meio dia de consumo. Um episódio comercial só possível, sem o mais mínimo
filtro ético, por ser Jair Bolsonaro o ministro da Saúde do governo Bolsonaro —
o que já se sabe desde Nelson Teich, o que viera para inexistir, mas que nos
ensinaria que até para a inexistência haverá limite.
Novidade tampouco é que, doente (doente?) Bolsonaro, haja os
que torçam pela doença, os que — mui práticos —desejam a morte do presidente
como solução; como forma, oportunidade, de derrotar o indivíduo eleito nas
urnas. Ou os que, filósofos, admitem a morte do sujeito, agente para a
barbárie, no bojo de sua responsabilidade — direta, objetiva — sobre a de milhares.
É onde estamos.
A depressão política que nos afunda há tempos busca um veio
radicalizador para impor um vale-tudo em que a extinção do outro — a pena
capital, divina ou não — seja consentida como parte do jogo; em que o desejo de
ver liquidado o outro, fisicamente mesmo, vá expresso como se politicamente
próprio ao debate público. Todos morrerão, afinal — já disse Bolsonaro. Que
morra ele, ora — diz-se em reação. Trata-se do triunfo de uma moral que se
arma; da glória da linguagem bolsonarista — aquela para a guerra.
Consequencialista, sem dúvida. O bolsonarismo — vivíssimo, como se continuará a
ver no MEC — agradece.
Não foi esta, porém, a porção de nossa desgraça que — a
partir de Bolsonaro contaminado (contaminado?) — mais me impressionou. Normalizou-se
entre nós a desconfiança. Internalizou-se — como componente de nosso
ferramental para a sobrevivência — a desconfiança. Então, o presidente da
República (e nós já tivemos outros mentirosos naquela cadeira) vem aos
microfones comunicar o diagnóstico — e as pessoas não lhe acreditam. Essa
prevenção, no grau como se vê, é nova.
De súbito, acostumamo-nos a considerar — como hipótese
robusta, não raro a primeira — que Bolsonaro infectado seria texto para diluir
a pauta do dia em que o filho Flávio depusera. De repente, temos todos, todos
arapongas, todos suspeitos, o nosso sistema pessoal de informações,
condicionados para não nos fiar no que diz aquele que, por exemplo, afirmou ter
provas (jamais apresentadas) de que a eleição de 2018 fora fraudada. Sim, o
presidente — um mentiroso — provoca a nossa precaução. É ele — mentindo — quem
nos educa sobre ser mesmo a cautela, para com ele, uma necessidade.
Eis o circuito e o vício: aquele que desconfia das urnas que
o elegeram e que instila teoria da conspiração contra a Justiça Eleitoral,
aquele contra o qual nos treinamos para desconfiar, é quem nos treina,
inclusive contra si — também ele cria da desconfiança, alguém só competitivo
porque desconfiamos.
Qual o custo democrático de não se crer na palavra do presidente?
Qual o preço que a ideia — o valor — de representação política paga quando
parte significativa da sociedade duvida do que diz um chefe de Estado? E o que
isso — a descrença — quererá informar sobre a prática desinformante e
conspirativa do bolsonarismo senão que terá vencido?
Não confiar — como princípio — é tornar fluidos os nossos
contratos sociais. Não confiar no presidente — supondo haver intenções ocultas
em seu verbo — é a face personalizada de não confiar nas instituições de
Estado.
Tratamos de um fenômeno — encarnado em Jair Bolsonaro,
aquele que mente como método — que tem como um dos fundamentos o investimento
perene em transformar tudo quanto seja fato em versão. Aí está. A fé pública se
liquefazendo em teorias da conspiração; cidadãos atentos primeiro a sinais —
esquemas discursivos — do que seria manipulação para esconder incômodos, e
desqualificando, como possibilidade menor, a chance de o sujeito estar dizendo
a verdade.
É o bolsonarismo que entra nas mentes; que rapta
pensamentos; que escraviza o modo de olhar para que esgarçado seja o tecido
social. Se a desconfiança se estabelece — se o negacionismo que o presidente
preconiza se implanta — como ponto de partida para nossas recepções e
percepções, Bolsonaro, a mais alta febre de nossa infecção antipolítica, avança
e cresce.
A descrença na atividade política — em sua capacidade de
gerar soluções que não para privilegiados — está na origem da ascensão do
nacional-populismo de extração autoritária. Bolsonaro é produto disso, da
descrença; da desconfiança que gera ressentimentos. É também produtor de
desconfiança. Um dos alimentos para sua existência — para a existência do
movimento reacionário, amálgama de ressentidos com ímpeto para a ruptura, a que
dá corpo.
Que essa desconfiança se volte contra a palavra dele não significará que perde, que o feitiço se vire contra o feiticeiro; mas que ele, líder sectário, joga em casa — e arrebanha.
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