A determinação do ministro Alexandre de Moraes, do Supremo
Tribunal Federal (STF), de bloquear páginas de bolsonaristas em redes sociais
provocou um bom debate. Desta vez não se trata de uma daquelas batalhas
estéreis entre claques que se ofendem e não se escutam. Estamos em meio a uma
discussão que mobiliza conceitos sérios, com fundamento ético e legal, sobre os
limites da Justiça e os alcances da liberdade de cada um. Há argumentos
legítimos e inteligentes de um lado e de outro. A hora pede reflexão. Mais do
que embarcar no Fla-Flu jurídico, devemo-nos dedicar a entender com calma o que
está em jogo.
Comecemos pela pergunta incômoda: a autoridade judicial
pode, no âmbito de um inquérito (no caso, o Inquérito 4.781, mais conhecido
como o “inquérito das fake news”), impedir preventivamente a manifestação das
pessoas investigadas? Pode o juiz impor a mordaça a um cidadão cujos atos ainda
não foram julgados?
Os que respondem “sim” a essa pergunta argumentam que os
trâmites da Justiça e das investigações policiais normalmente restringem
direitos fundamentais. Nada de novo sob o sol, portanto. Na terça-feira, em
webinar no site Poder 360, ninguém menos que o presidente do Supremo, Dias
Toffoli, seguiu essa linha de raciocínio. Lembrando que até mesmo o direito de
ir e vir pode ser suspenso pela autoridade judicial no curso de uma
investigação (é o que acontece quando o suspeito vai para a cadeia, em regime
de prisão preventiva, mesmo antes de seu suposto crime ter sido julgado pela
Justiça), Toffoli sustentou a tese de que a supressão preventiva de páginas de
pessoas investigadas nas redes sociais constitui um expediente análogo,
igualmente aceitável e legítimo, além de legal.
O argumento, bem construído, soa ainda mais convincente
quando observamos que aqueles que tiveram suas contas derrubadas nas redes não
foram cassados em sua liberdade de expressão, pois seguem se manifestando com
alta estridência em outros canais – apenas aquelas contas específicas, nas
quais foram identificadas condutas e postagens suspeitas, foram bloqueadas.
Além disso, o bloqueio das contas desses bolsonaristas seria indispensável para
o bom curso das investigações. Por tudo isso, o argumento procede.
Há, porém, outro ponto de vista. Quando perguntados se um
juiz teria poderes para impor a mordaça a um cidadão cujos atos ainda não
tivessem sido julgados, não são poucos os que respondem “não”. Nesse grupo não
figuram apenas os sabujos do presidente da República, empenhados em rebaixar a
União ao papel de despachante de blogueiros fascistas. Nesse grupo estão também
aqueles que não apoiam em nada o governo e se preocupam com precedentes que, no
bojo do inquérito das fake news, venham a enfraquecer no futuro o respeito à
liberdade de expressão. Estes (os que prezam a democracia) consideram que um
inquérito policial não deveria ter a prerrogativa de atropelar o livre curso do
debate público. Admitem, por certo, que todos devem ser responsabilizados
(julgados e punidos) pelos abusos que cometerem no uso da liberdade, mas não
aceitam a supressão preventiva de um milímetro que seja dessa liberdade.
É fato que hoje estamos falando de um inquérito que apura o
comportamento de milícias virtuais abjetas, que disseminam o ódio, o
preconceito, o fanatismo e a desinformação mais delirante, atentando
diariamente contra os mais preciosos alicerces da República e da democracia. As
contas bloqueadas, todo mundo sabe, reúnem um festival de ultrajes e baixezas
inomináveis, com pregações contra os direitos fundamentais e as liberdades
democráticas. Portanto, para um democrata, é confortável dar de ombros a uma
ação da Justiça que limite, ao menos um pouco, as violências virtuais
perpetradas por esses terroristas do simbólico. Mas o que acontecerá se,
amanhã, outro inquérito, com outras motivações, vier a interditar páginas que
não primem pela mesma vileza? A cargo de quem ficaria o critério de arbitrar
sobre o que deve e o que não deve ser proibido?
A muitos democratas preocupa a hipótese de que o inquérito
das fake news hoje abrigue um componente de censura que venha a produzir
estragos amanhã. Para estes, não dá para apoiar o bloqueio das páginas desta
vez só porque nos enoja o conteúdo bloqueado. E se gostássemos desse conteúdo,
qual seria a nossa reação? Será mesmo essencial, para o êxito das
investigações, que essas páginas sejam suprimidas das plataformas sociais?
Os dilemas implicados aí nada têm de corriqueiros. São
dilemas ameaçadores e desconhecidos – a indústria ilegal da desinformação,
cujos estragos estão apenas começando a se mostrar, é um fenômeno recente,
sobre o qual não há jurisprudência em nenhum lugar do mundo. No Brasil é ainda
pior, porque aqui o Poder Executivo age como um gabinete do ódio contra as
liberdades. Diante disso, a responsabilidade que pesa sobre o STF é quase
sobre-humana. Que nossos ministros saibam honrar a melhor tradição da Suprema
Corte, de consolidação das liberdades e fortalecimento da democracia, e trilhem
o melhor caminho.
*Jornalista, é professor da ECA-USP
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