A extinção do Ministério da Cultura foi o primeiro de uma
série de atos que simbolizam a aversão do governo Bolsonaro à cultura, às artes
e às liberdades conquistadas pela humanidade neste início do século 21.
O que o governo entende por cultura é o resgate de valores
autoritários, a censura, o dirigismo estatal, a legitimação da tortura e o
culto à violência e às armas. É evidente o desprezo por nossa diversidade
cultural, em especial pelas contribuições culturais africana e indígena.
Referências nazi-fascistas inspiram o esfacelamento da
memória nacional, a repressão ao ato criativo e a perseguição aos artistas. O
vexatório silêncio do governo na morte de João Gilberto, um ícone da música
mundial, mostra o tamanho da hostilidade.
Os povos indígenas sofrem com a explosão de invasões e
assassinatos enquanto o governo fala em “civilizar” e liberar garimpo em suas
terras. A proteção dos direitos dos índios é dever do Estado. E Marechal Rondon
já os defendia há mais de cem anos.
Vislumbra-se um cenário
de terra arrasada na Agência Nacional do Cinema (Ancine); agonia da
Cinemateca; elogios à escravidão pelo presidente da Fundação Palmares; ameaça
de extinção da Fundação Ruy Barbosa; inoperância da Funarte e a nomeação de uma
pessoa sem qualificação para presidir o Instituto do Patrimônio Histórico e
Artístico Nacional (Iphan).
O Iphan tem enorme responsabilidade na preservação da memória:
o barroco mineiro, as cidades históricas em que se deram os sonhos de
independência do Brasil; a capoeira e o samba; a poética de Drummond de
Andrade, Manuel Bandeira, Manoel de Barros e Cecília Meireles; a literatura de
Guimarães Rosa, João Ubaldo, Jorge Amado e Rachel de Queiroz; a arte de
Djanira; kusiwa, a pintura corporal do povo wajãpi, patrimônio cultural
mundial, e a espetacular arte gráfica dos caiapó e dos yawalapiti, entre tantas
outras criações brasileiras.
A cobiça e a pressão no licenciamento de empreendimentos
colocam esse patrimônio em risco. E “passar
a boiada”, como diz o ministro Ricardo Salles, é o lema do momento.
No audiovisual, pela primeira vez a cota de tela não foi
cumprida, e os filmes nacionais ficaram sem espaço no mercado. O corte do
financiamento do cinema e das séries faz o Brasil perder um espaço conquistado
na produção de conteúdo. A geração de renda da cultura sequer é vislumbrada
pela incompetente política econômica.
Condenar o Brasil a exportador de commodites e predador do
meio ambiente e os brasileiros a consumidores de quinquilharias da indústria
cultural globalizada são traços de um neocolonialismo.
É nesse terreno que a Covid 19 atinge a área cultural. Aldir
Blanc, Sérgio Sant’Anna e o kumu Higino do Rio Negro são alguns dos artistas e
mestres que tiveram suas vidas encurtadas. Quantas vozes insubstituíveis
poderiam ter sido salvas se o
governo não fosse omisso?
O Brasil e sua cultura são maiores que um governo medíocre.
Entretanto, quanto mais perdurar a demolição, mais difícil será a reconstrução.
Juca Ferreira
Sociólogo, é ex-ministro da Cultura (2008-10 e 2015-16;
governos Lula e Dilma) e ex-secretário da Cultura da Prefeitura de São Paulo
(2013-14, gestão Haddad)
Alfredo Manevy
Professor-adjunto da UFSC, é ex-secretário-executivo do Ministério da Cultura (2008-10, governo Lula) e ex-presidente da Spcine
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