Sempre leio Hélio Schwartsman, concordando e discordando,
porque aprecio a qualidade de seu texto e divirto-me com sua férrea lógica
consequencialista. Águias também fazem voos rasantes, mas dessa vez ele passou
do ponto: “Por que quero que Bolsonaro morra” (Folha, 8 de agosto) é uma
traição a meus princípios e, mais importante, uma dupla traição à filosofia do
próprio Schwartsman.
O argumento de que a morte de Bolsonaro por Covid-19
salvaria vidas é uma aplicação restritiva, quase infantil, do consequencialismo.
Há mais entre o céu e a terra do que a pandemia. O exame especulativo sobre as
implicações de hipotético falecimento presidencial não pode se cingir à ótica
exclusivista da epidemiologia.
Bolsonaro enfrenta a encruzilhada decisiva de seu (des)governo.
Na base social remanescente da extrema direita, que não é insignificante, sua
morte súbita teria o condão de salvá-lo da desmoralização, elevando-o a um
pedestal inexpugnável. O falso mito se tornaria, então, Mito.
A consequência mais ampla de sua morte biológica seria sua
vida política eterna. Em torno da tumba de um Messias de cartolina, se
reuniriam novas gerações de extremistas dispostos a assombrar a democracia
brasileira.
Eu, que não sou consequencialista, não desejo a morte
biológica de ninguém. Schwartsman, o consequencialista, tem o dever lógico de
torcer pela completa recuperação clínica do presidente, para que a crise em
curso produza sua morte política. No horizonte do longo prazo, é isso que
pouparia mais sofrimentos e mais vidas.
A segunda traição reveste-se de maior gravidade. O
consequencialismo consequente precisa ser aplicado aos atos do próprio
consequencialista. À luz dessa lógica, Schwartsman não deveria ter dado
publicidade ao seu desejo íntimo. O erro, nesse caso, estende-se à Folha, que
tem o dever de proteger as fronteiras do discurso publicável.
Bolsonaro já torceu publicamente pela morte de FHC (por
fuzilamento) e de Dilma Rousseff (por infarto ou câncer). Quando um articulista
de peso do maior jornal do país utiliza-se de linguagem paralela, está
legitimando o discurso da barbárie. A coluna faz o debate público retroceder
mais um degrau, rumo ao poço fétido habitado pelo olavo-bolsonarismo. Mas as
consequências não se limitam a isso.
Teoricamente, sob a inspiração do Código de Hamurabi,
Bolsonaro poderia invocar a lei de talião para declarar que torce pela morte de
Schwartsman. Ao contrário dos leitores de Schwartsman, os seguidores fieis de
Bolsonaro organizam-se como seita política, circulam armados por aí e pregam a
cisão violenta com a ordem legal.
A previsível interpretação do desejo presidencial por alguns
deles como uma fatwa, mais ou menos nos moldes da proclamada pelo aiatolá
Khomeini contra o escritor Salman Rushdie, mudaria radicalmente o patamar das
ameaças oficiais à liberdade de imprensa.
Em “A morte e a Morte de Quincas Berro D’Água”, sua obra
mais sofisticada, Jorge Amado reflete sobre a hipocrisia. O venerável Joaquim
Soares da Cunha, discreto funcionário público, morrera socialmente aos olhos de
seus familiares ao converter-se no cachaceiro boêmio Quincas Berro D’Água. A
morte biológica do protagonista propicia à família a vivência pública de um
luto simulado, que oculta o profundo alívio causado pelo desaparecimento da
fonte de desonra. Suspeito que, atrás da torcida pela morte de Bolsonaro,
esconda-se o desejo de borrar de nossas vistas as raízes da árvore do
extremismo de direita.
Quando torce para o vírus resolver o impasse político, o
racionalista Schwartsman exercita uma espécie peculiar de pensamento mágico.
Bolsonaro é, apenas, o pico emerso de uma montanha de dejetos históricos. O
Brasil deve carregar o fardo da desonra, para aprender a mirar sua imagem no
espelho —e matar politicamente a fonte do mal.
*Demétrio Magnoli, sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.
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