O reiterado descaso do presidente Jair Bolsonaro pela
pandemia que já tirou a vida de mais de 70 mil brasileiros tem um rival quase
imbatível: o desempenho do ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, na
dupla tarefa de desacreditar o vírus e o Brasil.
Desde que a Covid-19 desembarcou no país, o chanceler tenta
caracterizá-la como mal criado e disseminado pela esquerda - o “comunavírus”,
como ele gosta de tratar o que a turma bolsonarista chama de “vírus chinês”. Em
abril, publicou em seu blog pessoal um artigo em que acusa a Organização
Mundial da Saúde de usar a pandemia para incrementar um “projeto globalista” na
direção ao comunismo.
No texto, o ministro ressalta que o comunismo embutido no
“vírus ideológico” - considerado por ele mais perigoso que a Covid-19 - já
estava sendo executado pelo “climatismo ou alarmismo climático”, ou sob a égide
da “ideologia de gênero, do dogmatismo politicamente correto, do
imigracionismo, do racialismo, do antinacionalismo, do cientifismo”. Um libelo
de arrepiar até terraplanistas.
A escalada negacionista continuou a se aprofundar, incluindo
organismos estatais para divulgá-la.
Na terça-feira, 14, Araújo promove, por meio da Fundação
Alexandre de Gusmão (Funag), órgão de pesquisa do Itamaraty, a conferência
virtual “Memória do comunismo e atualidade do vírus da mentira”, com o jornalista
e escritor Federico Jiménez Losantos. Apresentador do La Mañana, programa
matutino de audiência da rede espanhola Code, Losantos é um achado: um maoísta
desencantado, com discurso aclamado pela direita extrema, que se autodefine
como liberal.
Outras palestras no gênero foram realizadas ao longo do ano.
A conjuntura internacional no pós-coronavírus teve como debatedores os
neoespecialistas e assessores especiais da Presidência da República Felipe G.
Martins e Arthur Weintraub, irmão do ex-ministro da Educação. A despeito de ter
sido o pior titular da pasta a se sentar na Esplanada – ou até por esse motivo
-, o antiglobalista convicto Abraham ganhou assento no Banco Mundial como
prêmio de consolação pela fidelidade canina ao presidente Bolsonaro.
A Funag recebeu também o moçambicano Gabriel Mithá Ribeiro,
polêmico defensor de teses no mínimo heterodoxas. Para o autor do livro “Um
século de escombros: pensar o futuro com valores morais da direita”, o racismo
não existe mais, o colonialismo nunca existiu, e o “pai intelectual do Brasil
atual é o professor Olavo de Carvalho”.
O ciclo de conferências tem causado desconforto a
diplomatas, que só não põem a boca no trombone em respeito ao Itamaraty e por
saber que governos passam e a instituição fica. Alguns deles não escondem que
gostariam que esse passasse depressa.
Nada contra o pensamento de direita que em muito enriquece a
governança em diversas partes do mundo. Nem mesmo aversão às suas correntes
mais radicalizadas, ainda que sofram dos males do fanatismo, válido para as
dois polos ideológicos. Mas quando promovidos por uma organização de Estado, os
encontros teriam que, pelo menos, tentar parecer plurais. Seria conveniente
ainda se despirem do caráter catequizador e do eloquente proselitismo ao
governante da vez.
Como se um erro autorizasse outros, alguns dirão: os
governos do PT faziam ações semelhantes e ninguém reclamava. Mentira para boi
dormir ou para iludir a boiada. Foram duramente criticados, seja no conteúdo
pró-ditaduras de esquerda nas Américas, na África e no Oriente Médio, seja no
desperdício de dinheiro público para promover encontros de formação política.
Não é necessário recorrer ao Google ou fazer qualquer
esforço de memória para apontar que o início da partidarização das Relações
Exteriores se deu sob o comando de Celso Amorim, no governo Lula. Ali, o
Itamaraty começou a envergonhar seu patrono Rio Branco. De lá para cá, respirou
um pouco no curto período de Michel Temer para, de novo, cair na esparrela.
Com sua agenda desconectada da razão, da lógica e do mundo,
Araújo é um dos protagonistas ativos do massacre da imagem do Brasil lá fora,
golpeada cotidianamente pelo negacionismo do presidente Bolsonaro diante da
pandemia, desmatamento recorde e desdém ambiental.
Como o país precisa de gente capaz de desfazer nós e não de
apertá-los, Araújo entrou na mira da turma do “segura o touro”. Os que defendem
um governo sem arroubos tentam convencer Bolsonaro a colocar na bandeja as
cabeças do chanceler e do ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles.
Salles até pode ser servido. Araújo é prata da casa.
Enquanto isso, a cristaleira refinada anos a fio pela invejável diplomacia brasileira, que começou a se quebrar no governo Lula, se estilhaça de vez. Vira cacos.
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