Aprovado no Senado Federal no dia 30 de junho, o Projeto de
Lei (PL) 2.630/2020, que cria a Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e
Transparência na Internet, começou a tramitar na Câmara dos Deputados.
Apelidado de lei das fake news, o projeto abriu a semana sendo discutido em
painéis públicos organizados pela própria Câmara. Melhor assim. Como alertou
editorial do Estado publicado na terça-feira (Prudência com as fake news), “é
essencial que a Câmara faça uma profunda e serena discussão a respeito do texto
aprovado pelos senadores”. O editorial advertiu também que “o açodamento e o
populismo podem causar grandes estragos”.
De saída, reconheçamos que durante a tramitação no Senado o
PL melhorou. Delírios corporativistas como o de punir quem “ridicularizasse” os
políticos caíram fora. Medidas que afrontavam direitos fundamentais foram
expelidas. O índice de maluquices diminuiu, mas o PL ainda não está bom.
Algumas passagens assombram como portais das trevas. Há
trechos que dão a impressão de que, na implantação da lei, virá uma autoridade
(ou uma autoridade delegada) com poderes para arbitrar sobre o que é verdade e
o que é mentira. O artigo 4.º, inciso II, fala em diferenciar o que é humor do
que não é. Sejamos francos: quem vai estabelecer a distinção entre uma fraude
informativa e uma piada de mau gosto? O artigo 6.º, parágrafo 1.º, tenta
resguardar “a manifestação artística, intelectual ou satírica” das ações que
vedarão as “contas inautênticas”. Ora, quem dará a palavra final sobre o que é
o quê?
Fora isso, ficaram no texto possíveis riscos para a
privacidade. São riscos menores do que aqueles que o Senado já cuidou de
varrer, mas não são desprezíveis. O advogado Francisco Brito Cruz, diretor do
InternetLab, aponta alguns deles no artigo 7.º e, especialmente, no artigo
10.º, que tratam da identificação do usuário. É preciso mudar a redação desses
artigos.
O PL ainda esconde brechas que guardam possíveis ameaças aos
pilares fundamentais da internet – neutralidade de rede, privacidade e
liberdade de expressão –, já consagrados na legislação em vigor. Se não forem
corrigidas, essas brechas poderão dar cobertura, no futuro, a arbitrariedades
de autoridades ou, pior ainda, a efeitos colaterais de uma autorregulação que
venha a ser mal regulada. Se os conglomerados monopolistas das mídias digitais
(como Facebook/WhatsApp e Google, por exemplo) forem investidos pela lei de
poderes hipertrofiados, poderemos despencar numa terceirização da censura. Não
subestimemos os piores cenários: como sabemos por experiência própria,
pesadelos costumam virar realidade quando os legisladores erram.
A lei das fake news tem pontos positivos, claro, mas também
tem uma carga ácida de alucinações legifobéticas. Querer responsabilizar as
plataformas sociais pelos conteúdos que qualquer um pode postar, como se as
plataformas fossem publicações jornalísticas, é um delírio.
Um Facebook da vida pode ser um veículo publicitário
(arrecada bilhões de reais com anúncios de todo tipo, drenando de modo
insidioso a maior parte das verbas publicitárias que antes iam para empresas
jornalísticas), mas não é,, nem de longe, um órgão de imprensa. Uma plataforma
social é um ambiente de comunicações em rede, um ambiente dentro do qual
coexistem páginas de milhões de órgãos de imprensa. Não há como culpar o
ambiente por tudo o que se pronuncia dentro dele. Exigir que as plataformas
controlem com rédea curta o que seus usuários dizem equivale a transformá-las
num Ministério Global da Verdade, num grau de totalitarismo que nem George
Orwell ousou imaginar.
Isso tudo não significa que não deva existir lei nenhuma.
Estão equivocados os que dizem que o velho Código Penal, com a tipificação dos
crimes de calúnia, injúria e difamação, dará conta de barrar o pandemônio
desinformativo em que se converteu a internet. Se o Código Penal resolvesse
tamanha monstruosidade, as leis nacionais de porte de armas barrariam a corrida
armamentista das ogivas nucleares. Admitamos: uma bomba atômica fere mais que
uma garrucha enferrujada, do mesmo modo que a indústria (ilegal) da
desinformação é incomparavelmente mais danosa que uma injúria.
Enfim, os conglomerados precisam ser regulados, ou seguirão
mandando e desmandando sobre os fluxos e contrafluxos da informação e da
desinformação, sem prestar contas a ninguém. A questão é: como regulá-los?
Os parlamentares mais atentos já perceberam o caminho que
pode dar certo – e já desconfiam daquele que vai dar errado, com absoluta
certeza. Nos artigos em que tem foco nas práticas indevidas (os chamados
comportamentos abusivos), o PL encontra sua vocação. Quando enfrenta o uso
ilegal de robôs, as contas fraudulentas, os disparos em massa clandestinos,
acerta o alvo. Por outro lado, quando envereda por exegeses de “conteúdos”,
erra estrondosamente. O caminho certo é coibir os comportamentos abusivos. O
caminho errado é definir por lei o que é verdade e o que é mentira.
Se tiverem mais sabedoria que pressa desmedida, os deputados
farão um bom serviço.
*Jornalista, é professor da ECA-USP
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