Como no futebol, a democracia é uma caixinha de surpresas.
Por mais que a gente celebre o regime democrático, nem sempre estamos
satisfeitos com o que ele nos entrega. Nem sempre o que é parido em seu ventre
é aquilo que pensamos ser o melhor para a nação e para nós mesmos. Há sempre um
sincero limite naquilo que achamos pelo menos razoável para continuarmos a
viver em paz numa dita democracia, quando somos surpreendidos pelos resultados
desagradáveis de uma eleição indiscutível. Em 2018, foi mais ou menos essa a
natureza de nossa angústia: como contestar um resultado eleitoral legítimo, que
não correspondia, nem um pouco, ao mínimo do que esperávamos para o futuro da
nação? Mesmo que simplesmente enquanto democracia.
A decepção pode vir de uma traição à nossa esperança. Como
em 1961, quando o Brasil elegeu Jânio Quadros seu presidente da República.
Jânio era a síntese do que acreditávamos que a nação podia ser e tinha que ser
inevitavelmente. Uma democracia inteligente e moderna, acima dos interesses
geocêntricos da Guerra Fria, com a economia voltada para um desenvolvimento com
integridade, liberdade e a igualdade possível. Apoiado à esquerda e à direita,
Jânio confirmava nosso sonho de liderança e independência, a consequência mais
feliz de uma democracia adolescente de 15 anos, conquistada depois de uma
Guerra Mundial e da longa ditadura de Getúlio Vargas.
Pois o governo Jânio Quadros não chegou a completar sete
meses, encerrado com sua manobra de renúncia que não passava de pobre tentativa
de golpe de estado, atribuída por ele a “forças ocultas”. Foi a renúncia de
Jânio e a luta política pela posse de seu vice-presidente legal, João Goulart,
que deu origem à articulação militar que desembocou em 1964 e em 21 anos de
ditadura. Não posso entender como, nas últimas eleições, brasileiros que viveram
os anos sombrios desse período estivessem escolhendo e levando seus filhos a
escolher alguém que defendia a ditadura, a tortura e os torturadores,
declarando que para o Brasil dar certo era preciso matar uns 30 mil, que eludia
ou mentia descaradamente em comícios e na televisão.
Acredito que grande parte do movimento da Covid 19 é uma
espécie de acerto de contas da Natureza com a Humanidade, um chega pra lá do
que não é humano, para que nós, os seres humanos, aprendamos de uma vez que não
somos donos do planeta, nem seus únicos hóspedes. Não sei dizer exatamente
como, mas para mim é claro que a ascensão pelo mundo afora desse populismo
autoritário e mentiroso, comandado por líderes perversos e inescrupulosos,
inaugurado e estimulado pelo exemplo tenebroso do atual presidente dos Estados
Unidos, é também um alarme à nossa inconsciência e à nossa incompetência
política universal.
É preciso encerrar o eventual castigo com remissão. O
populismo sabe ganhar eleição, mentindo para, uma vez no poder, destruir a
democracia, fazer desmoronar o sentido de liberdade para construir um
iliberalismo (com I) sobre sua carcaça. A nossa vantagem é que a habilidade em
redes sociais e ilusões que nos são vendidas na campanha não serve para
governar. Eles simplesmente não sabem governar. E não sabem governar porque
jamais se interessaram por mais de um, sendo esse um eles mesmos. Para eles, o
outro não existe. E só se tem um projeto político, só se governa para o outro.
Ou não se tem o que governar.
Os que votaram apressados em 2018 por falta de alternativa
sabem que seu voto não foi um crime. Numa democracia, quando exercida com
correção, não há crime, nem pena, por uma opção livre. Mas outros valores
igualmente democráticos estão nos defendendo dos absurdos que surgem no horizonte,
a nos ameaçar. Hoje, a democracia brasileira está, mais do que nunca, vivendo
de razões de Justiça pública ou privada. Há sempre uma razão moral e legal,
cada vez que surge uma novidade política que preste ou não.
O Superior Tribunal de Justiça de um candidato a ministro do
Supremo mandou soltar Fabrício Queiroz e parar de procurar sua mulher foragida.
Mas o Supremo Tribunal Federal, por sua vez, enviou à Procuradoria-Geral da
República um pedido de inquérito contra Ricardo Salles, o ministro do Meio
Ambiente e da boiada por baixo da lei. A própria iniciativa privada nos protege
do mal, quando o Facebook derruba páginas de ódio e investiga Tercio Tomaz,
enquanto o WhatsApp suspende as contas do PT por estarem operando de forma
automatizada.
E tem ainda o exemplar caso do casal da Barra da Tijuca, Leonardo e Nívea, que, numa noitada de flexibilização, mandou um “sabe com que está falando?” pra cima de um fiscal que chamou o rapaz de “cidadão”. Vejam só, a perversão política chegou, entre nós, ao ponto de fazer um casal, com curso superior, não saber mais o que significa cidadão.
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