terça-feira, 28 de julho de 2020

NO GOGÓ DA EMA

Carlos Andreazza, O GLOBO

Temos um remédio santificado entre nós. Não importarão quantos estudos lhe indicarem a ineficiência, temos — teremos, ecoando no zap profundo — um medicamento santificado, glorificado, comungado no altar do Alvorada. A cloroquina salva. A cloroquina salva. A cloroquina salva. O próprio retrato de um Brasil — mui influente — que é teórico da conspiração e negacionista.

Não interessa a ciência — essa senhora formal — que testa, pondera e contraindica. A ciência que prudentemente informa, com base na experiência, assim: são muitos os indicativos de que não sirva — podendo até fazer mal se aplicado — para combater a Covid-19. Não importam os estudos. A fotografia do estado espiritual de nossa sociedade vai toda nesta inabalável afirmação de fé: a hidroxicloroquina é a salvação negada pelos que torcem pela doença e contra Bolsonaro.

Então, de repente, tínhamos — temos — um remédio patriota que seria agente político da direita na luta contra o vírus chinês, o agente político inimigo conspirador comunista. A hidroxicloroquina como a própria infantaria conservadora no campo de batalha da guerra cultural, de cuja fantasia depende a existência do bolsonarismo.

Esse esquema propagandístico prosperou e prospera ainda. A cloroquina salva. A cloroquina salva. A cloroquina salva. Jair salva. E que não subestimemos a percepção popular a partir da campanha de desinformação bolsonarista: um medicamento — a solução contra a peste — que se queria ministrar para a população, que se poderia ministrar para a população, mas que foi desqualificado por uma concertação do establishment, disposto mesmo a matar brasileiros em troca de não deixar que o remédio de Bolsonaro mostrasse seu efeito curador. Tudo para que ele, Jair, não triunfasse.

O culto à desconfiança venceu.

“Deixem o homem trabalhar. Deixem a cloroquina funcionar”. Não adianta evidenciar que não trabalha; que não funciona. A mensagem — plantação do nós contra eles total — enraíza-se: “Não escutem os especialistas. Não deem ouvidos à imprensa. Estão politizando a questão”. Sim. Numa inversão tão bárbara quanto eficaz, a politização do vírus e de seu enfrentamento é atribuída aos que mostram como o projeto de poder bolsonarista avança para desacreditar os fatos de modo a que somente haja versões.

O culto à desconfiança venceu.

Bolsonaro faz aquilo que se espera de líderes populistas de sua extração: criação e difusão de mitos. Propagação do que seria, ante a pandemia, o elemento salvador; e elemento salvador — o medicamento — com caráter: acessível ao povo diretamente. Como ele, Bolsonaro: acessível ao povo diretamente. Bolsonaro, segundo a crença bolsonarista: também um remédio. Não é?

Jair salva.

Atenção ao processo discursivo personalista por meio do qual, de súbito, na eucaristia bolsonarista, o presidente e a hidroxicloroquina seriam um só, o mesmo corpo curandeiro sacrificado — aquela panaceia que prescindiria de intermediários para cuidar das pessoas.

Dirão as massas só existentes na narrativa, lá onde Bolsonaro pegaria no batente: “Deixem o homem trabalhar. Deixem a cloroquina funcionar”. Dirá o pastor: “Nós temos a cloroquina. A salvação que nos é interditada. Nós produzimos a cloroquina. A independência salvadora que nos é proibida. Nós podemos — queremos — tomar a cloroquina. Tomemos. Ela está no meio de nós”.

Jair salva. Mas não salvará aqueles que, com responsabilidade pública, legitimaram, ainda que pela omissão, o uso de um remédio como crendice para armar reacionários em cruzada. Muitos médicos. Muitas associações médicas. Muitos hospitais. Muita gente que viu vantagem. Muita gente que fez negócio. Que especulou e faturou.

E há também, triste e gravíssimo, o papel do Exército brasileiro nessa farsa. Uma instituição de Estado, de natureza impessoal, que aceitou se associar — em casamento já indissolúvel — a governo de turno; que aceitou ofertar um seu general da ativa à função de cavalo de Bolsonaro no milagre da multiplicação por meio do qual o presidente se converteu igualmente em ministro da Saúde, púlpito desde onde celebrou, com batina verde-oliva, a missa de canonização da cloroquina.

O Exército chancelou a irresponsabilidade anticientífica e anti-intelectual daquele que ora propagandeia o remédio, a comunhão, para emas.

Não houve Mandetta, um político, nem sequer Teich — aquele que viera para inexistir — que aceitassem tamanha submissão; que aceitassem que seus gogós fossem o da ema. Mas um general — da ativa — topou. O Exército topou. E não foi só. Porque o Brasil, por meio do laboratório do Exército, fabricou, gastando milhões, para satisfazer fetiche de milagreiro, milhões de comprimidos de hidroxicloroquina — resultando em que o país esteja abastecido para a eternidade. Para quê? Para a eternidade de quem? Para investigação conduzida por quem na Terra? Ou caberá somente ao Senhor?

Jair — aqui, entre os mortais — talvez se salve. Salvará o Exército?

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