Temos um remédio santificado entre nós. Não importarão
quantos estudos lhe indicarem a ineficiência, temos — teremos, ecoando no zap
profundo — um medicamento santificado, glorificado, comungado no altar do
Alvorada. A cloroquina salva. A cloroquina salva. A cloroquina salva. O próprio
retrato de um Brasil — mui influente — que é teórico da conspiração e
negacionista.
Não interessa a ciência — essa senhora formal — que testa,
pondera e contraindica. A ciência que prudentemente informa, com base na
experiência, assim: são muitos os indicativos de que não sirva — podendo até
fazer mal se aplicado — para combater a Covid-19. Não importam os estudos. A
fotografia do estado espiritual de nossa sociedade vai toda nesta inabalável
afirmação de fé: a hidroxicloroquina é a salvação negada pelos que torcem pela
doença e contra Bolsonaro.
Então, de repente, tínhamos — temos — um remédio patriota
que seria agente político da direita na luta contra o vírus chinês, o agente
político inimigo conspirador comunista. A hidroxicloroquina como a própria
infantaria conservadora no campo de batalha da guerra cultural, de cuja
fantasia depende a existência do bolsonarismo.
Esse esquema propagandístico prosperou e prospera ainda. A
cloroquina salva. A cloroquina salva. A cloroquina salva. Jair salva. E que não
subestimemos a percepção popular a partir da campanha de desinformação
bolsonarista: um medicamento — a solução contra a peste — que se queria
ministrar para a população, que se poderia ministrar para a população, mas que
foi desqualificado por uma concertação do establishment, disposto mesmo a matar
brasileiros em troca de não deixar que o remédio de Bolsonaro mostrasse seu
efeito curador. Tudo para que ele, Jair, não triunfasse.
O culto à desconfiança venceu.
“Deixem o homem trabalhar. Deixem a cloroquina funcionar”.
Não adianta evidenciar que não trabalha; que não funciona. A mensagem — plantação
do nós contra eles total — enraíza-se: “Não escutem os especialistas. Não deem
ouvidos à imprensa. Estão politizando a questão”. Sim. Numa inversão tão
bárbara quanto eficaz, a politização do vírus e de seu enfrentamento é
atribuída aos que mostram como o projeto de poder bolsonarista avança para
desacreditar os fatos de modo a que somente haja versões.
O culto à desconfiança venceu.
Bolsonaro faz aquilo que se espera de líderes populistas de
sua extração: criação e difusão de mitos. Propagação do que seria, ante a
pandemia, o elemento salvador; e elemento salvador — o medicamento — com
caráter: acessível ao povo diretamente. Como ele, Bolsonaro: acessível ao povo
diretamente. Bolsonaro, segundo a crença bolsonarista: também um remédio. Não
é?
Jair salva.
Atenção ao processo discursivo personalista por meio do
qual, de súbito, na eucaristia bolsonarista, o presidente e a hidroxicloroquina
seriam um só, o mesmo corpo curandeiro sacrificado — aquela panaceia que
prescindiria de intermediários para cuidar das pessoas.
Dirão as massas só existentes na narrativa, lá onde
Bolsonaro pegaria no batente: “Deixem o homem trabalhar. Deixem a cloroquina
funcionar”. Dirá o pastor: “Nós temos a cloroquina. A salvação que nos é
interditada. Nós produzimos a cloroquina. A independência salvadora que nos é
proibida. Nós podemos — queremos — tomar a cloroquina. Tomemos. Ela está no
meio de nós”.
Jair salva. Mas não salvará aqueles que, com
responsabilidade pública, legitimaram, ainda que pela omissão, o uso de um
remédio como crendice para armar reacionários em cruzada. Muitos médicos.
Muitas associações médicas. Muitos hospitais. Muita gente que viu vantagem.
Muita gente que fez negócio. Que especulou e faturou.
E há também, triste e gravíssimo, o papel do Exército brasileiro
nessa farsa. Uma instituição de Estado, de natureza impessoal, que aceitou se
associar — em casamento já indissolúvel — a governo de turno; que aceitou
ofertar um seu general da ativa à função de cavalo de Bolsonaro no milagre da
multiplicação por meio do qual o presidente se converteu igualmente em ministro
da Saúde, púlpito desde onde celebrou, com batina verde-oliva, a missa de
canonização da cloroquina.
O Exército chancelou a irresponsabilidade anticientífica e
anti-intelectual daquele que ora propagandeia o remédio, a comunhão, para emas.
Não houve Mandetta, um político, nem sequer Teich — aquele
que viera para inexistir — que aceitassem tamanha submissão; que aceitassem que
seus gogós fossem o da ema. Mas um general — da ativa — topou. O Exército
topou. E não foi só. Porque o Brasil, por meio do laboratório do Exército,
fabricou, gastando milhões, para satisfazer fetiche de milagreiro, milhões de
comprimidos de hidroxicloroquina — resultando em que o país esteja abastecido
para a eternidade. Para quê? Para a eternidade de quem? Para investigação
conduzida por quem na Terra? Ou caberá somente ao Senhor?
Jair — aqui, entre os mortais — talvez se salve. Salvará o Exército?
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