A frase antológica que intitula a coluna, do jagunço
Riobaldo, em Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa, nunca foi tão
universal. No romance, repete-se muitas vezes, como as referências aos
redemoinhos e ao diabo. “Hoje, sei. E sei que em cada virada de campo, e
debaixo de sombra de cada árvore, está dia e noite um diabo, que não dá
movimento, tomando conta. Um que é o romãozinho, é um diabo menino, que corre
adiante da gente, alumiando com lanterninha, em o meio certo do sono. Dormi,
nos ventos. Quando acordei, não cri: tudo que é bonito é absurdo — Deus
estável.”
A situação que os brasileiros estão passando em meio à
pandemia do coronavírus é como ter um pesadelo acordado. Estamos numa travessia
marcada pela incerteza, na qual um vírus terrível vive à espreita. Sair às ruas
é um risco, ao qual cada vez mais pessoas estão submetidas, seja pelo número de
infectados assintomáticos que circulam, seja pela necessidade de voltar ao
trabalho para sobreviver. Ontem, batemos recorde de casos da covid-19
registrados em 24 horas. Segundo o Ministério da Saúde, foram nada menos que
67,8 mil diagnósticos positivos, somando 2,227 milhões de casos confirmados. O
recorde anterior, em 19 de junho, era de 54 mil casos. As mortes por covid-19
registradas nas últimas 24 horas foram 1.284. Subiu para 82.771 o número de
óbitos pela doença no país.
A pandemia continua assombrosa em São Paulo, onde avançou
pelo interior, e pressiona os estados do Sul e do Centro-Oeste. No Norte e
Nordeste do país, parece que o pior já passou. Impossível dissociar a
sofisticada filosofia do jagunço Riobaldo do diplomata Guimarães Rosa, o
escritor: “No real da vida, as coisas acabam com menos formato, nem acabam.
Melhor assim. Pelejar por exato, dá erro contra a gente. Não se queira. Viver é
muito perigoso…”. Riobaldo flertava com correntezas e redemoinhos: “Viver — não
é? — é muito perigoso. Porque ainda não se sabe. Porque aprender a viver é que
é o viver mesmo”.
Sem controle
O Brasil está relaxando as quarentenas, a política de
isolamento social. Mesmo com 82,7 mil mortes, as cidades estão reabrindo o
comércio, as pessoas voltam a circular, nos transportes lotados e calçadas
apinhadas, o risco não diminuiu, aumentou. Doze estados ainda registram
expansão da doença: Paraná, Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Goiás, Mato
Grosso do Sul, Mato Grosso, Amapá, Pará, Rondônia, Roraima, Tocantins e
Paraíba. Ao mesmo tempo, a omissão do governo federal começa a produzir
indicadores objetivos que responsabilizam o presidente Jair Bolsonaro e o
ministro interino da Saúde, o general Eduardo Pazuello, pelo fato de a pandemia
permanecer sem controle. Tudo tem seu preço.
A deliberada “descoordenação” do Ministério da Saúde no
combate à pandemia se traduz na execução orçamentária da pasta, questionada,
ontem, no Tribunal de Contas da União (TCU). O ministro Benjamin Zymler afirmou
que é muito “baixa” a execução dos recursos destinados ao combate à pandemia.
Segundo seu relatório, o Ministério da Saúde gastou 29% do dinheiro que
recebeu. Dos R$ 39 bilhões disponíveis, R$ 11,5 bilhões foram efetivamente
pagos. Interino na pasta, o general Eduardo Pazuello está arrumando sarna para
se coçar, pois pode ser responsabilizado judicialmente pelo fracasso no combate
à pandemia, bem como seus principais assessores, por não empregarem os meios
disponíveis para contê-la.
O primeiro sinal de que esse risco é real foi dado, ontem, pelo ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal (STF), que determinou ao Conselho Nacional de Justiça (CNJ) o monitoramento das reuniões entre o governo e lideranças indígenas. A conselheira Maria Thereza Uille Gomes passará a acompanhar a “sala de situação”, que monitora a epidemia nas aldeias. A decisão foi tomada porque integrantes da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) se queixaram ao STF de que foram ameaçados e humilhados por integrantes do governo numa reunião. Há 10,2 mil índios contaminados nas aldeias, que registram 408 mortes. O cacique Aritana, do Alto Xingu, contraiu coronavírus e está em estado grave, hospitalizado em Goiânia. A morte dos idosos nas aldeias indígenas representa perda da identidade étnica desses povos, que é preservada por transmissão oral de suas culturas.
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