quinta-feira, 23 de julho de 2020

VIVER É MUITO PERIGOSO

Do Blog do Luiz Carlos Azedo, Correio Braziliense

A frase antológica que intitula a coluna, do jagunço Riobaldo, em Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa, nunca foi tão universal. No romance, repete-se muitas vezes, como as referências aos redemoinhos e ao diabo. “Hoje, sei. E sei que em cada virada de campo, e debaixo de sombra de cada árvore, está dia e noite um diabo, que não dá movimento, tomando conta. Um que é o romãozinho, é um diabo menino, que corre adiante da gente, alumiando com lanterninha, em o meio certo do sono. Dormi, nos ventos. Quando acordei, não cri: tudo que é bonito é absurdo — Deus estável.”

A situação que os brasileiros estão passando em meio à pandemia do coronavírus é como ter um pesadelo acordado. Estamos numa travessia marcada pela incerteza, na qual um vírus terrível vive à espreita. Sair às ruas é um risco, ao qual cada vez mais pessoas estão submetidas, seja pelo número de infectados assintomáticos que circulam, seja pela necessidade de voltar ao trabalho para sobreviver. Ontem, batemos recorde de casos da covid-19 registrados em 24 horas. Segundo o Ministério da Saúde, foram nada menos que 67,8 mil diagnósticos positivos, somando 2,227 milhões de casos confirmados. O recorde anterior, em 19 de junho, era de 54 mil casos. As mortes por covid-19 registradas nas últimas 24 horas foram 1.284. Subiu para 82.771 o número de óbitos pela doença no país.

A pandemia continua assombrosa em São Paulo, onde avançou pelo interior, e pressiona os estados do Sul e do Centro-Oeste. No Norte e Nordeste do país, parece que o pior já passou. Impossível dissociar a sofisticada filosofia do jagunço Riobaldo do diplomata Guimarães Rosa, o escritor: “No real da vida, as coisas acabam com menos formato, nem acabam. Melhor assim. Pelejar por exato, dá erro contra a gente. Não se queira. Viver é muito perigoso…”. Riobaldo flertava com correntezas e redemoinhos: “Viver — não é? — é muito perigoso. Porque ainda não se sabe. Porque aprender a viver é que é o viver mesmo”.

Sem controle

O Brasil está relaxando as quarentenas, a política de isolamento social. Mesmo com 82,7 mil mortes, as cidades estão reabrindo o comércio, as pessoas voltam a circular, nos transportes lotados e calçadas apinhadas, o risco não diminuiu, aumentou. Doze estados ainda registram expansão da doença: Paraná, Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Goiás, Mato Grosso do Sul, Mato Grosso, Amapá, Pará, Rondônia, Roraima, Tocantins e Paraíba. Ao mesmo tempo, a omissão do governo federal começa a produzir indicadores objetivos que responsabilizam o presidente Jair Bolsonaro e o ministro interino da Saúde, o general Eduardo Pazuello, pelo fato de a pandemia permanecer sem controle. Tudo tem seu preço.

A deliberada “descoordenação” do Ministério da Saúde no combate à pandemia se traduz na execução orçamentária da pasta, questionada, ontem, no Tribunal de Contas da União (TCU). O ministro Benjamin Zymler afirmou que é muito “baixa” a execução dos recursos destinados ao combate à pandemia. Segundo seu relatório, o Ministério da Saúde gastou 29% do dinheiro que recebeu. Dos R$ 39 bilhões disponíveis, R$ 11,5 bilhões foram efetivamente pagos. Interino na pasta, o general Eduardo Pazuello está arrumando sarna para se coçar, pois pode ser responsabilizado judicialmente pelo fracasso no combate à pandemia, bem como seus principais assessores, por não empregarem os meios disponíveis para contê-la.

O primeiro sinal de que esse risco é real foi dado, ontem, pelo ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal (STF), que determinou ao Conselho Nacional de Justiça (CNJ) o monitoramento das reuniões entre o governo e lideranças indígenas. A conselheira Maria Thereza Uille Gomes passará a acompanhar a “sala de situação”, que monitora a epidemia nas aldeias. A decisão foi tomada porque integrantes da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) se queixaram ao STF de que foram ameaçados e humilhados por integrantes do governo numa reunião. Há 10,2 mil índios contaminados nas aldeias, que registram 408 mortes. O cacique Aritana, do Alto Xingu, contraiu coronavírus e está em estado grave, hospitalizado em Goiânia. A morte dos idosos nas aldeias indígenas representa perda da identidade étnica desses povos, que é preservada por transmissão oral de suas culturas.

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