O governador de São Paulo liderou a resistência federativa à
escalada obscurantista do presidente da República na pandemia. Jair Bolsonaro
saía à rua beijando crianças, João Dória nunca aparecia sem máscara. Um dizia
que o Brasil não podia parar, o outro pregava o confinamento. Contra a
cloroquina federal, ergueu-se a ciência bandeirante.
Cinco meses depois do início da batalha contra o
coronavírus, a capital paulista conseguiu derrubar para a metade o número de
óbitos registrados no pico da doença. Ainda é cedo, porém, para se cantar
vitória contra a covid-19. Não bastassem os ônibus e os bares lotados, o
projeto de lei 529, enviado pelo governador em regime de urgência, caiu na
Assembleia Legislativa como uma capitulação.
Enquanto o presidente foge de uma reforma administrativa e
negocia com o Congresso uma claraboia sobre o teto de gastos para abrigar um
programa que dê continuidade ao auxilio emergencial, os governadores estão
acuados. Sem o bônus de popularidade com o qual o auxílio brindou Bolsonaro,
preparam-se para enfrentar 2021 sem os repasses extras aprovados pelo Congresso
e tendo que retomar o pagamento de suas dívidas, suspenso até dezembro.
Em São Paulo, a resposta foi um projeto que revira a
administração pública de ponta-cabeça. Privatiza o zoológico e nove parques,
extingue a empresa responsável pela coordenação do transporte de cinco regiões
metropolitanas (EMTU), autarquias que cuidam da preservação ambiental
(Instituto Florestal), da política agrária (Itesp), de criminalística (Imesc) e
da administração de aeroportos (Daesp). Acaba ainda com a empresa de habitação
(CDHU), com uma rendição explícita, na exposição de motivos, ao avanço do Minha
Casa Minha Vida.
Depois de tanto se falar em reconversão industrial para
aumentar a segurança nacional na produção de medicamentos e equipamentos
hospitalares, o projeto extingue, numa canetada, a maior fabricante pública de
remédios do país (Furp), a fundação de pesquisa de câncer (Oncocentro) e a
autarquia das endemias (Sucen).
No mesmo dia que o projeto de Dória chegou à Assembleia, o
prefeito e candidato à reeleição Bruno Covas decretou o enxugamento da
Coordenadoria de Vigilância em Saúde (Covisa), um dos eixos do enfrentamento
das epidemias na cidade. A portaria levou a uma carta aberta de seis
ex-coordenadores do órgão, três dos quais, do PSDB.
O maior golpe no discurso pró-ciência com o qual os tucanos
paulistas enfrentaram o presidente da República, no entanto, veio num dos
capítulos do projeto de Doria que remete para o tesouro estadual o superávit
das universidades e das fundações do Estado, entre elas, a de amparo à pesquisa
(Fapesp), de onde saiu boa parte dos estudos sobre a pandemia.
No capítulo menos polêmico, mas nem por isso mais fácil de
ser aprovado, o projeto reduz e unifica as isenções do ICMS em 18%, unifica a
cobrança do IPVA em 4% (acabando o benefício para veículos de combustível
limpo), aumenta o valor das contribuições para a rede de atendimento médico-hospitalar
dos servidores (Iamspe), altera a cobrança da dívida ativa e sua securitização,
e estabelece uma arbitragem para o valor de imóveis e doações sobre os quais
incide o imposto de transmissão.
A amplitude do projeto desnorteou a Assembleia Legislativa.
A reação predominante foi a de que o governo, ao reunir tantas iniciativas num
único projeto, teve como objetivo “baratear” sua tramitação. Como o pedido de
urgência abrevia os prazos, os deputados não teriam tempo para se aprofundar no
debate e, pressionados, acabariam aprovando o projeto com poucas modificações.
A deputada Marina Helou (Rede), resume a queixa generalizada
de que o prazo de emendas terminou sem que os parlamentares tivessem
conhecimento dos dados e projeções que o lastreiam. Por mais sensíveis que
estejam à situação financeira do Estado, resistem a votar no escuro.
Temem que, para enfrentar uma situação temporária, o governo
faça mudanças estruturais que afetarão definitivamente a formulação de
políticas públicas. Se, por um lado, as autarquias fomentam o corporativismo,
por outro, são um anteparo às diatribes dos gestores de plantão.
Como secretário do Meio Ambiente em São Paulo, por exemplo,
Ricardo Salles só não conseguiu fazer do cargo a antessala do desmonte que hoje
promove na Esplanada por conta das autarquias da pasta. Foi este um dos
argumentos que levou o governo paulista a mitigar o enxugamento da área.
Idealizador do projeto, o secretário Mauro Ricardo Costa,
não descarta novos ajustes, mas desafia opositores a apresentar alternativas
para o déficit de R$ 10,4 bilhões do orçamento do próximo ano. Atribui as
pedras hoje jogadas contra o governo ao fato de São Paulo ter saído na frente
com medidas de enxugamento que todos os Estados e municípios, diz, terão que
tomar – “Estão todos quebrados, mas ainda não se atentaram”.
Titular de secretarias de fazenda e planejamento em quatro
unidades da federação (São Paulo, Minas, Bahia e Paraná), a convite de gestores
premidos por ajustes inadiáveis, Mauro Ricardo não teme protestos, nem mesmo
depois de ter assistido ao centro cívico em Curitiba se transformar numa praça
de guerra em 2015.
Resiste, por exemplo, a aceitar o argumento de que o
financiamento das pesquisas científicas será afetado pela devolução do
superávit das fundações ao tesouro. Diz que as fundações não podem pretender
ficar com sobra de caixa acumulada para pesquisas de longo prazo quando a
saúde, a educação e a segurança pública do Estado ameaçam colapsar. Prevê um
desemprego resiliente a empurrar as famílias para escolas e hospitais públicos,
além de pressionar indicadores de violência.
Espanta, por isso, que toda essa penúria só não afete os
repasses para o Judiciário. O governo paulista conseguiu aprovar na Assembleia
a destinação de um terço das taxas judiciárias (R$ 380 milhões) para o Tribunal
de Justiça. A Câmara dos Deputados aprovou ontem crédito de R$ 200 milhões para
a construção de novas sedes da Justiça Federal e do Ministério Público Federal
nos Estados. É a locomotiva, em meio aos escombros, puxando a Federação a todo
vapor.
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