Fernando Schüler, Folha de S.Paulo
Governo sabe que a reforma não rende votos, mas ela é sua
melhor chance de deixar um legado
O documento lançado por um grupo de economistas, no início
da semana, defendendo o teto de gastos e propondo “rebaixar o piso”, ou seja,
reformas capazes de preservar e aprimorar o edifício de estabilização fiscal
construído pelo país nos últimos anos, deveria ser lido e relido, em Brasília.
O argumento diz que, dada a atual trajetória fiscal, a
preservação do teto de gastos é insustentável. O gasto obrigatório sobe a uma
taxa superior à inflação, e tornará inviável o custeio da máquina pública logo
ali adiante.
O mercado já precifica o problema. O sistema político é mais
lento e aprecia um exercício de autoengano. Governo à frente. É pura ilusão
pensar em um programa robusto de transferência de renda e uma agenda crível de
investimento público sem encarar os temas difíceis do ajuste fiscal.
O problema é o governo se decidir a enviar ao Congresso a
reforma administrativa. O tema está maduro. A pandemia escancarou a
desigualdade entre o mundo protegido do alto funcionalismo público e o universo
precário do emprego privado, que pagou sozinho a conta da debacle econômica.
As razões da reforma são autoevidentes. O Brasil gasta 13,5%
do PIB com servidores e entrega serviços públicos de baixa qualidade. Sendo
seus usuários fundamentalmente os mais pobres, a ineficiência do Estado
funciona como um motor das desigualdades no país.
Resolver isso supõe um longo caminho de reformas e ninguém
imagina que elas serão feitas na atual gestão federal. O que se espera é que o
governo tenha a coragem de dar o primeiro passo. Em duas direções.
A primeira trata do RH do governo. Revisão das carreiras
públicas, redução dos salários iniciais, flexibilização dos modelos de
contratação, avaliação de desempenho e possibilidade de redução de jornada e
vencimentos em situações de risco fiscal.
O segundo caminho distingue funções de Estado e serviços
públicos concorrenciais (que vão da saúde até a gestão de parques). Diz que o
governo deve se concentrar nas tarefas de regulação e deixar à sociedade e ao
mercado a execução de serviços. Enquanto isto não andar, a ideia de melhorar a
qualidade da entrega pública não passará muito de retórica.
Há sinais positivos no horizonte. Sou da época em que ainda
se imaginava que o governo devia administrar aeroportos por se tratar de um
setor estratégico. Hoje, precisamente por se reconhecer que eles são
estratégicos chegou-se à conclusão de que o governo e sua burocracia não devem
administrá-los.
A reforma é politicamente viável. Previsível seria vermos o
chefe do Executivo pressionando o Parlamento a fazer a reforma, mas o que temos
é o contrário. Rodrigo Maia “tentando convencer” o presidente a enviar o projeto.
O governo amplia sua base no Congresso e há uma frente
parlamentar robusta tratando do tema. Quem patina é o governo. Em parte por
falta de convicção, em parte por saber que o assunto lhe renderá mais uma
montanha de detratores e nenhum voto.
Salim Mattar escreveu que o “establishment” feito de
sindicatos, políticos e fornecedores forma uma barreira às privatizações. A
pergunta é: algum dia foi diferente? As corporações sempre estiveram aí e a
inércia do setor público sempre foi a mesma. Apesar disso reformas importantes
foram feitas no passado recente.
O atual governo iniciou dizendo que encerraria o ciclo de
governos sociais-democratas e faria tudo diferente. Talvez tenha acreditado no
mito de que foi fácil fazer as privatizações dos anos 1990, que os leilões da
Vale ou Embraer foram um passeio, o mesmo valendo para a reforma do Estado.
É bom que tenham descoberto que as coisas são mais difíceis,
no Brasil, e que talvez a reforma administrativa seja a sua melhor chance,
talvez a última, de deixar um legado.
Do contrário, nossos liberais-conservadores terão que
reconhecer que, mesmo no terreno que propuseram como seu, fizeram pior do que
os sociais-democratas dos anos 1990, cujo legado de reformas ainda é o melhor
ponto de partida para as mudanças que o país precisa fazer.
*Fernando Schüler, professor do Insper e curador do projeto
Fronteiras do Pensamento. Foi diretor da Fundação Iberê Camargo.
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