Cantor, compositor e
ex-ministro da Cultura (2003-2008, governo Lula)
A falta de diálogo vem interditando a participação e o
debate na sociedade brasileira. E vou buscar como exemplo um fato que envolve,
neste momento, a música brasileira, um dos traços mais marcantes da nossa
cultura. O cenário é o Congresso Nacional.
Em meio à maior angustia vivida pela saúde pública mundial e
suas consequências econômicas e sociais, alguns políticos decidiram investir
contra os direitos autorais que garantem a sobrevivência de compositores,
músicos e cantores. Estamos falando de uma iniciativa recente, no Congresso, de
um projeto que, se aprovado, impactará diretamente 400 mil pessoas e suas
famílias.
Por meio das MPs 907 e 948, tentaram, recentemente, permitir
que o setor hoteleiro deixasse de pagar os direitos
autorais pela execução pública das obras musicais em quartos de
hotéis. Ao setor hoteleiro, uniram-se vários outros setores, todos com o mesmo
objetivo: não
pagar pelo uso de obras musicais.
Não conseguiram, mas não desistiram. Em sessão remota
prevista para breve, a Câmara poderá aprovar, sem ouvir os titulares de
direitos autorais, um requerimento de urgência ao projeto de lei 3.968 de 1997,
ao qual estão apensados mais de 50 outros projetos, todos buscando a isenção do
pagamento da remuneração que autores, músicos e intérpretes têm o direito de
receber pelo uso de suas obras musicais.
A questão aqui colocada é que a Constituição, a Lei Federal
de Direitos Autorais e normas internacionais de proteção à propriedade
intelectual garantem aos autores o domínio sobre suas obras e o devido
pagamento pela execução pública de suas criações.
Em 2013, a sociedade abriu uma ampla discussão, que resultou
em diversas mudanças na Lei de Direito Autoral. Se o Congresso agora entende
que esta lei deve ser revista, nós, artistas e entidades que nos representam,
estamos dispostos a discutir o assunto. Queremos e devemos ser convocados para
essa discussão. Não concordamos —é importante que se diga— nem com o momento
nem com a forma com que essa revisão está sendo proposta, pressupondo, de
boa-fé, que a intenção do Congresso é, de fato, avançar nessa questão.
É um contrassenso que essa questão seja levada ao Congresso,
de afogadilho, sem o contraditório e o confronto de opiniões, sem que todos os
segmentos envolvidos se sentem à mesa.
Perguntamos: para onde foi o diálogo? A democracia pressupõe
a participação de todos na definição dos processos políticos. Ouvir todas as
partes interessadas nas questões que lhes dizem respeito é a norma do jogo
democrático.
É descabido e desumano que isso ocorra em meio a um momento
inédito de pandemia, quando milhões de brasileiros sofrem com incertezas em
relação à sua saúde, convivem indefesos e impotentes com a morte diária de
pessoas vitimadas por uma doença ainda não totalmente conhecida e enxergam um
futuro econômico incerto.
Além de descabido e desumano, é traiçoeiro sacar de um
projeto de 1997, anterior a uma lei que foi votada e aprovado em 2013. Todo
esse movimento em falso para beneficiar interesses econômicos em detrimento da
sobrevivência de milhares de trabalhadores. Sim, artista é trabalhador. Não
podemos esquecer desse aspecto fundamental na discussão que precisa ser feita.
A indústria
da música é uma parte importante da economia criativa do Brasil, e no
meio da crise buscou se reinventar. Munidos de uma tecnologia da comunicação
cada vez mais sem fronteiras, os artistas apostaram nas lives para chegar ao
seu público. E tem sido assim nesses tempos em que não podemos nos abraçar,
encontrar as pessoas que amamos nem nos divertir com segurança.
Portanto, a música está na contramão das medidas que tentam
tolher a capacidade criativa dos artistas, impondo-lhes num momento tão difícil
maiores restrições econômicas. Temos esperanças de que nenhuma medida nesse
sentido —uma afronta ao Estado democrático de Direito— será aprovada sem que os
artistas sejam chamados ao palco de debates para expor sua opinião na defesa
dos seus direitos.
Evitar o debate, além de não democrático, pode soar como
intolerância, palavra tão utilizada ultimamente no que tange às relações
humanas e políticas e que deve estar longe, também, das questões que envolvam a
cultura —essa dimensão simbólica que nos caracteriza e nos liberta, tão
preciosa na construção de nossas identidades como povo e nação.
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