O que há de mais significativo na saída de duas importantes
autoridades do Ministério da Economia, nesta semana, é que elas fazem parte da
mesma ala liberal que procura, desde o início, montar uma agenda modernizadora
e liberalizante para o atual governo. A saída deles cria interrogações sobre o
futuro, pois indica um esvaziamento e perda de substância desse pensamento
ideológico dentro do governo.
O momento da saída foi muito ruim, pois o ministro Paulo
Guedes enfrenta uma disputa interna com as alas militar e política do governo,
que querem um programa de investimento em obras de infraestrutura como
estratégia para sair da crise econômica provocada pela pandemia.
Guedes está praticamente sozinho dentro do governo na defesa
do teto de gastos da União, quando até o filho mais velho do presidente da
República diz que ele precisa arrumar “um dinheirinho” para aumentar os
investimentos públicos. O senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ) se esquece
que “um dinheirinho” o ministro da Economia até pode arrumar, o que ele não
conseguirá é abrir um espaço no teto de gastos para fazer os investimentos que
o primogênito de Jair Bolsonaro deseja.
Duas coisas espantam nesse episódio. A primeira foram as
razões alegadas pelos assessores de Guedes para os pedidos de demissão. O secretário
especial de Desestatização, Salim Mattar, disse ao ministro que “é muito
difícil privatizar, que o ‘establishment’ não deixa fazer privatização, que
tudo é muito emperrado, que tem que ter um apoio mais definido e decisivo”. O
secretário especial de Desburocratização, Gestão e Governo Digital, Paulo
Uebel, queixou-se, segundo relato de Guedes, que “a reforma administrativa está
parada”.
As razões apresentadas parecem ingênuas. Uma rápida olhada
na história recente do Brasil vai mostrar que privatizar estatais nunca foi
tarefa fácil, desde que o ex-presidente João Figueiredo criou o primeiro
programa brasileiro de desestatização, no início da década de 1980. De lá para
cá, houve muitos avanços importantes nessa área, como a privatização do grupo
Telebrás. Mas outras iniciativas foram paralisadas por interesses conhecidos,
como é o caso do grupo Eletrobras, que está para ser privatizado desde o
governo do ex-presidente Michel Temer e não se consegue.
Ao contrário do que pensam alguns, não são apenas os partidos
de esquerda e os sindicatos que se mobilizam contra as privatizações. Os
integrantes dos partidos que fazem parte do chamado Centrão também gostam de
ocupar cargos bem remunerados nas estatais. As estatais foram, até passado
recente, usadas para fazer negócios escusos, que beneficiaram grupos políticos.
Muitos ainda as veem como fonte para obtenção de vantagens ilícitas.
O caso das reformas estruturais, como a administrativa, não
é diferente. Se Uebel fosse político saberia das dificuldades para aprovar no
Congresso Nacional mudanças que tiram privilégios ou afetam pretensos direitos
ou interesses constituídos. Vale lembrar, por exemplo, que a reforma tributária
é discutida no Congresso há pelo menos 30 anos, sem avançar.
No livro “Por que é difícil fazer reformas econômicas no
Brasil?”, lançado neste ano, o economista Marcos Mendes enumera uma série de
questões que dificultam as mudanças. Uma delas é o sistema político-eleitoral,
que complica a formação de maiorias parlamentares. No caso do governo Bolsonaro,
em que o presidente nem sequer tem partido, o problema é ainda maior. Outros
obstáculos citados por Mendes são os conflitos entre os Poderes, uma
Constituição muito detalhista, uma baixa coesão social e um país muito grande,
com expressivas desigualdades regionais.
Mattar e Uebel achavam que desta vez seria fácil fazer as
privatizações e as reformas, apenas porque consideram que elas são o melhor
caminho para o avanço do país? Seria ingenuidade acreditar que sem base
política ampla no Congresso é possível aprovar medidas que exigem três quintos
dos votos de deputados e senadores.
Para fazer as reformas e as privatizações, é necessário
também vontade política do presidente da República. A saída de Mattar e Uebel
indica que eles concluíram que Bolsonaro já não tem vontade de fazer um forte
programa de privatização, a toque de caixa, nem de encarar os desafios de uma
reforma administrativa.
Outra coisa que causou espanto foram as palavras de Guedes
sobre o teto de gastos. “Os conselheiros do presidente que o estão aconselhando
a pular a cerca e a furar o teto vão levar o presidente para uma zona sombria,
uma zona de impeachment, de irresponsabilidade fiscal”, disse o ministro. Com a
frase, Guedes não apenas tornou pública a disputa dentro do governo em torno
desta questão, como lembrou ao presidente que crise fiscal pode levar à sua
destituição, como aconteceu com a ex-presidente Dilma Rousseff.
O ministro Paulo Guedes rejeitou a proposta de
“seguro-receita” para os Estados durante a pandemia, feita no PLP 149, de
autoria do deputado Pedro Paulo (DEM-RJ, que chegou a ser aprovada pela Câmara.
Por pressão de Guedes, o Senado fez outro projeto, que resultou na lei
complementar 173, fixando um teto de R$ 60,15 bilhões a serem repassados aos
governos estaduais e prefeituras para cobrir perdas de arrecadação.
O resultado foi que o tiro saiu pela culatra. Os dois
primeiros repasses aos Estados feitos pelo Tesouro superaram as perdas que eles
tiveram com o ICMS. “Eu avisei que isso ia acontecer”, disse Pedro Paulo, em
conversa com o Valor. “O PLP era muito mais lógico tecnicamente e seria mais
barato, eficiente e justo do que a LC 173”, afirmou. “Com os dados reais de
queda de arrecadação do ICMS e ISS, vemos que o Tesouro gastará R$ 20 bilhões a
mais do que seria necessário e de forma absolutamente desigual”, disse.
Pedro Paulo informou que encaminhou ontem uma Proposta de
Fiscalização Financeira e Controle (PFC) ao Tribunal de Contas da União (TCU)
solicitando a fiscalização desses recursos para evitar que sejam aplicados em
ações não relacionadas à pandemia, cobrando responsabilidade e devolução à
União.
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