Até certo ponto inesperada, e por isso ainda vista por
alguns como ponto fora da curva ou raio em céu sereno, a pandemia de covid-19
acabou por se impor como o elo que, uma vez bem apreendido, permite lançar luz
nova sobre toda uma corrente de fatos e acontecimentos que moldam nosso tempo,
particularmente conturbado. Signo ao mesmo tempo da globalização e de suas
fragilidades, a faísca que se acendeu há menos de um ano no imprudente “mercado
molhado” de Wuhan, espalhando-se por toda parte e praticamente emperrando a
máquina do mundo, logo gerou percepções anacrônicas, alimentou negacionismos e
confirmou a sensação de que a unificação do gênero humano não é um processo
inscrito nas próprias coisas e, portanto, uma marcha triunfal previamente garantida.
A consciência humana, não raramente, costuma correr atrás
das mudanças sociais e dos eventos da História, e não há de ser muito diferente
desta vez, quando a interdependência de povos e nações, objetivamente
estabelecida, convive com instituições políticas em sua maioria restritas ao
plano nacional. Somos cidadãos de uma nação, nela votamos e pagamos impostos,
sentimo-nos próximos dos governantes que, nos momentos felizes de vida
plenamente democrática, podemos eleger ou destituir. Muito mais longe estão os
organismos multilaterais, a começar pela ONU; relativamente débeis, com exceção
da União Europeia, as tentativas de coordenação supranacional; e ainda fumosa a
ideia de uma sociedade civil internacional, em cujo âmbito, mesmo assim e
apesar de tudo, já transcorrem manifestações globais antirracistas ou em defesa
do meio ambiente, indicativas de que uma cultura de direitos só tem sentido se
tender à universalização, como nos ensinaram as grandes revoluções da
modernidade.
A consciência estreita, ideológica, no mau sentido da
palavra, com que se percebem processos dessa magnitude é uma âncora pesada a
nos amarrar ao passado. O internacionalismo dos antigos comunistas, com todas
as suas limitações, dava uma chave de leitura do mundo, mas ai de quem o lamentar
nostalgicamente. Proclamar mecanicamente a palavra de ordem “socialismo ou
barbárie” é pregar para convertidos, antes de mais nada por ignorar que as
formas do socialismo de Estado foram também bárbaras ou, na hipótese melhor,
autoritárias. O americanismo, a outra forma de universalismo que terminou por
assinalar todo o século passado, hoje recua para sua dimensão mais egoísta e
rudimentar, renunciando a dirigir os acontecimentos e proclamando
canhestramente “America first”. Trump é o interesse bruto, imediato, na
contramão do sonho americano de Roosevelt, da Grande Sociedade de Johnson, dos
direitos humanos de Carter, das inovações em saúde pública de Obama.
Perigoso internamente, Trump ainda irradia pelo mundo força
e inspiração para nacionalismos sem grandeza, como os que caracterizam a
experiência dos chamados populismos contemporâneos. O autoritarismo de todos
eles – na Hungria, na Polônia, no Brasil ou, ainda, na Venezuela, em sua versão
de esquerda – deixa cicatrizes nas instituições democráticas, ferindo-as mais
ou menos de acordo com a resistência que encontra.
As lideranças populistas, na versão de extrema direita,
enchem a boca para apregoar um conservadorismo que, estranhamente, não conserva
instituições, antes as depreda, e para impingir uma religião que, mais
estranhamente ainda, se degrada a mero instrumento de poder e de regressão
medievalesca. Conservadores “revolucionários” difundem homogeneamente, por onde
se instalam, não só a concepção do “inimigo interno”, com o qual não seria possível
conviver, como também a do “inimigo externo”, que estaríamos fadados a combater
numa reedição extemporânea da guerra fria. O vírus da covid, afinal, é um
comunavírus, um vírus chinês, desenhado para abater o “Ocidente
judaico-cristão” e implantar o comunismo, esse dragão da maldade a requerer um
santo guerreiro sempre mais virulento e implacável.
O paradoxo é que esses pequenos nacionalismos compõem, peça
a peça, um singular internacionalismo de extrema direita que hoje desafia as
formas da democracia tal como a conhecemos. Reivindicam a estreiteza nacional
como destino e âmbito existencial, mas globalmente ajudam-se, reconhecem-se,
trocam experiências. Sempre que podem, reúnem-se para demolir ou deslegitimar
irresponsavelmente instâncias multilaterais, tornando mais difícil a construção
de mecanismos capazes de governar democraticamente processos que afetam todos,
como as crises financeiras, o aquecimento da Terra ou as pandemias que decerto
nos esperam mais adiante.
Curiosamente, ou nem tanto, para a construção desses
mecanismos é imprescindível a presença ativa dos conservadores clássicos. Eis
um elo – a contribuição dos conservadores – que é preciso considerar para
manter viva a corrente da democracia. Há muito que conservar nas nossas
sociedades, mesmo que a História não tenha acabado e se vislumbre um longo e
indefinido caminho de mudanças que só descobriremos à medida que o palmilharmos
em liberdade.
*Tradutor e ensaísta, é um dos organizadores das ‘Obras’ de
Gramsci no Brasil
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