A consciência demanda organizar o passado. Há muitas formas
de lidar com o tempo. Em sociedades sem escrita, nas quais a morte de um velho
seria equivalente à perda parcial de muitos fatos e mitos — algo próximo da
destruição de uma biblioteca nacional —, trata-se de um desastre inafiançável.
Será que um dia vamos conhecer nosso passado milenar? Ou
existem passagens que simplesmente sumiram, como a poeira das galáxias e das
nossas invisíveis almas?
O leitor pode se sentir incomodado pelo assunto. Eu,
cronista enviesado, que, se não estou, devo ingressar na cavilosa lista dos
antifascistas convictos, apenas reitero que muito do que fizemos é esquecido,
senão propositadamente apagado, porque seria prova de incoerências, crimes,
projetos hediondos e contradições incontornáveis, sobretudo em coletivos
fundados na autoridade do pai, do rei, do supremo sacerdote ou do juiz.
Investigando nossas vidas, descobrimos coisas que apagamos e
muitas outras que programamos esquecer. Quando esquecemos de boa-fé e
eventualmente ferimos alguém, acertamos o mal-estar por meio de pedidos de
desculpa ou perdão. No mundo jurídico-político anistiamos, formalmente
suprimindo fatos passados. Reinterpretações desfazem e mudam o passado. Pedir
desculpas, perdoar e anistiar “lavam a alma” e são passaportes para recomeços.
Mas, para apagar ou esconder o passado debaixo do tapete, como é comum no
Brasil, é necessário um penoso, discutível e complexo refazer histórico-social
— tipo, como esquecer a ditadura militar. É preciso o autoritarismo forte
presente para controlar, conforme sabia o Grande Irmão de George Orwell, o
passado.
Eis dois episódios que agasalhei na memória. Ambos ocorreram
com um professor, inglês até a alma, que havia programado um jantar de
sexta-feira com a esposa e, ao chegar em casa, com ela desentendeu-se. Algo
banal, como uma toalha suja, despertou ressentimentos e, com eles, um
inesperado ódio expresso em memórias amargas e frases agressivas. Em meio à
tempestade, porém, o marido abriu um parêntese similar a uma desculpa e
denunciou o mal-entendido. “Querida”, disse, “isso não está acontecendo. Eu vou
sair e entrar novamente em casa e nós vamos jantar conforme combinado”. E assim
foi feito.
Um outro evento com o mesmo professor confirma, quem sabe,
essa capacidade humana de desconstruir, cujo melhor e mais dramático exemplo é
o elo entre paz e guerra. Depois de uma impecável conferência em impecável
estilo britânico para uma plateia encantada numa universidade do sul dos
Estados Unidos, fomos jantar com um colega que hospedou o conferencista. Na
manhã seguinte, fui tomar café com o anfitrião, que perguntou ao professor num
misto de curiosidade e provocação: “Eu acho”, disse, “que fui muito ofensivo
ontem, não?” Ao que, com notável elegância, o professor retrucou: “O que
ocorreu ontem foi tão desagradável, mas tão desagradável, que eu simplesmente
apaguei da minha memória”.
Se fazemos, podemos desfazer. Democracias podem desandar em
regimes policialescos que trazem do passado escravocrático um viés semelhante
ao dos nazifascismos e estalinismos.
Vivemos um momento no qual se acende um alerta de apagão
político-moral que suspende o bom senso. A direita bolsonarista tem como
simbólico um inacreditável terraplanismo — um contrassenso indicativo de uma
postura, digamos o mínimo, radicalmente irracional. Na política, não há dúvida
de que se quer um presidencialismo absolutista. Uma outra contradição que, ao
lado de um patológico familismo presidencial, completa a negação de solenes
promessas de campanha.
Em suma: testemunhamos tentativas de apagar o dito que se
transforma num não dito, incompatível com uma necessária estabilidade capaz de
minar a autoestima e o respeito internacional, sobretudo em tempos de pandemia
num mundo globalizado.
Se esquecemos as implicações morais da escravidão e as
obrigações igualitárias da República, por que, como adverte o jornalista Carlos
Alberto Sardenberg no GLOBO, não livramos, por meio de um apagão legal, o
principal condenado da Lava-Jato, avocando que o magistrado foi parcial?
Mas, se isso for admitido, como o plano da lei e o caráter
dos magistrados ficam perante todos os condenados na mesma operação
anticorrupção que ainda está em curso?
Para quem duvida que o autoritarismo protofascista nacional
é avesso ao igualitarismo, seria cabível livrar somente o ex-presidente, quando
todos os seus asseclas foram investigados por um mesmo magistrado? Para os
leigos em jurisprudência, tal livramento seria mais um “Você sabe com quem está
falando?” na área criminal. Sabemos que a realidade pode ser manipulada, mas,
por isso mesmo, temos consciência de limites. Um deles é a morte ou, no caso, o
supremo suicídio da estrutura jurídica nacional. Esse instrumento que sustenta
o regime republicano num simples ideal: o de que todos são iguais perante a
lei, no caso, os julgados e condenados…
Resta candidamente avisar que apagar passados impede
construir futuros.
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