Viramos uma sociedade que não se espanta mais quando o
presidente da República se vê compelido a convocar a imprensa para garantir, ao
lado da cúpula do Legislativo, que respeitará a Constituição.
Na prática, esse é o substrato do que ocorreu na semana
passada, quando o presidente Jair Bolsonaro chamou para uma reunião improvisada
no Palácio da Alvorada o presidente do Senado, Davi Alcolumbre, o presidente da
Câmara, Rodrigo Maia, ministros de Estado e líderes governistas no Congresso. A
imprensa foi avisada que o presidente faria um pronunciamento após o encontro,
organizado de última hora com o objetivo de acalmar o mercado e dissipar as
dúvidas sobre a permanência no governo do ministro da Economia, Paulo Guedes.
Bolsonaro disse respeitar o teto de gastos e perseguir a
responsabilidade fiscal. Guedes ouviu o que queria. O mercado decidiu
acompanhar as cenas dos próximos capítulos.
Quem acabou se dando bem foi o presidente do Supremo
Tribunal Federal (STF). Convidado, o ministro Dias Toffoli tinha um problema de
saúde e escapou da cena em que Bolsonaro teria que repetir mais uma vez o que
tantas vezes já jurou ao tomar posse como deputado federal e ao assumir a
Presidência da República.
Em todas essas ocasiões, o juramento exigido pela legislação
não deixa margem para interpretações heterodoxas. “Prometo manter, defender e
cumprir a Constituição, observar as leis, promover o bem geral do povo
brasileiro e sustentar a união, a integridade e a independência do Brasil”,
afirmam em alto e bom som todas as autoridades recém-eleitas, antes de
começarem a exercer seus respectivos mandatos.
Se o respeito à Constituição já é uma obrigação de qualquer
cidadão, a inclusão dessas palavras nos termos de posse deveria servir para
deixar ainda mais claro o compromisso e evitar maiores problemas.
Mas, nem sempre é assim. No caso de Bolsonaro, essa expectativa
já havia sido frustrada quando ele participou de manifestações antidemocráticas
em Brasília. O mesmo ocorreu quando declarou que “ordens absurdas” não deveriam
ser cumpridas, após uma operação da Polícia Federal atingir seus aliados que
estavam sendo investigados por suposto envolvimento na produção e no
financiamento de “fake news”.
No caso do recente pronunciamento em frente ao Palácio da
Alvorada, as discussões acabaram se concentrando no prestígio pessoal do
ministro da Economia, que vem se esforçando para proteger as contas públicas do
assédio da ala mais desenvolvimentista do governo. Ficou em segundo plano um
ponto central do debate: o respeito ao teto de gastos é um mandamento
constitucional que, até alcançar seu prazo de validade ou ser alterado por uma
outra PEC, não deve depender da disposição pessoal das autoridades que
estiverem à frente da máquina federal. Ele precisa ser devidamente observado ou
o governo estará assumindo o risco de cometer uma irregularidade fiscal.
É bom ter isso no radar porque, apesar de uma aparente
trégua entre as alas liberais e desenvolvimentistas do Executivo, esse debate
não deve sair da pauta no curto prazo.
Existe, no Congresso, a percepção de que cedo ou tarde os
ímpetos populistas do presidente novamente colocarão à prova a fé do ministro
no liberalismo do governo. As apostas vão de potenciais pressões sobre a
política de preços dos combustíveis a divergências mais profundas sobre a
elaboração ou a execução do Orçamento.
Até o início da pandemia, as diferentes visões existentes
dentro do governo não eram capazes de gerar maiores turbulências. A ala mais
desenvolvimentista acreditava que o cenário pós-coronavírus poderia até gerar
oportunidades para o Brasil.
A visão era que o país demonstrara comprometimento com sua
solvência ao aprovar a reforma da Previdência. Com vários países colocando suas
taxas de juros em patamares negativos, acrescentavam essas autoridades, a ampla
carteira de obras de infraestrutura e as mudanças regulatórias empreendidas
pela atual administração atrairiam investidores estrangeiros mesmo sem o país
conseguir reconquistar o grau de investimento.
Havia um discurso praticamente unânime na defesa da redução
de investimentos públicos e na aposta de um crescimento econômico lastreado no
setor privado – uma retomada sustentável que garantisse a recuperação das
finanças do Estado. Porém, o cenário mudou com o aprofundamento da crise e a
proximidade do período eleitoral.
Está em curso uma reacomodação das forças internas do
governo. A ala desenvolvimentista tenta convencer Bolsonaro de que a realização
de obras públicas é a melhor e mais rápida solução para a geração de empregos.
Enquanto a equipe econômica tenta resistir, esse mesmo grupo
tenta emplacar o discurso segundo o qual a ampliação de investimentos em obras
de infraestrutura hídrica e habitação deve ser enquadrada como um esforço de
combate à pandemia. Afinal, argumentam, esgoto, água encanada e moradia de
qualidade são essenciais para melhorar as condições sanitárias de milhões de brasileiros.
Será difícil convencer o Congresso e o Tribunal de Contas da União (TCU) de que
essa tese não representa uma burla ao teto de gastos, mas ela começa a ter
simpatia no Palácio do Planalto.
Há ainda outro movimento embrionário que demanda atenção. O
presidente e alguns de seus auxiliares esboçam a acusação de que a reação do
mercado às articulações para furar o teto é um movimento especulativo contra o
Brasil. Bolsonaro chegou a pedir mais patriotismo do mercado, ignorando o fato
de que parte considerável das operações da Bolsa de Valores é feita por
investidores estrangeiros.
Ainda há tempo de evitar que se abandone de vez uma postura
mais capaz de atrair investimentos privados. O Brasil dependerá deles para
retomar o crescimento.
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