Minha mulher dorme. Meus filhos dormem. Eu estou me
aninhando no sofá entre seis almofadas cientificamente dispostas feito um
cockpit projetado pela Ferrari com a Cia das Letras.
Uma água com gás, gelo e limão sobre o banquinho posicionado
a 85 centímetros e num ângulo de 45 graus a sudoeste da minha axila esquerda,
de modo que eu consiga pegar e devolver o copo sem o mínimo inconveniente de
erguer o cotovelo apoiado no sofá. Abro o livro num êxtase quase religioso,
antevendo três horas de paz —e o celular apita.
Notificação da Folha. A senadora Kamala
Harris foi escolhida para vice do Joe Biden na corrida presidencial
norte-americana. Sinto uma tristeza mastodôntica.
Não tenho nada contra a Kamala, não sei lhufas sobre Kamala
e a preguiça vem justamente daí. Ao ver a notificação, penso: agora vou ter que
ler sobre a Kamala, ouvir podcast sobre a Kamala, formar uma opinião sobre a
Kamala, dar like ou deslike em post atacando ou defendendo a Kamala. Como se
não bastassem tantas, mais uma lição de casa.
Quando foi que a vida se transformou nesta preparação para
uma chamada oral? Quando começamos a consumir notícias como se a qualquer
momento fôssemos nos materializar no sofá de um talk show? “Qual a sua opinião
sobre a volta da CPMF?”. “E
sobre o ‘cancelamento’ de pessoas?”. “E a vacina russa?”. “E a caspa do
Paulo Guedes?”.
Ali no sofá (de casa, não do talk-show), lendo no celular
sobre a pragmática filha de uma indiana com um jamaicano, senadora assertiva
sobre as questões raciais, embora com certas decisões controversas na época de
procuradora, lamento não viver, sei lá, em 1834, em Quixeramobim. (O livro,
deixado sobre a mesinha, vai lentamente se empapando com as lágrimas derramadas
pelo copo de água com gás).
Em 1834, em Quixeramobim, o sujeito estava pitando um
cigarrinho de palha; bombas explodiam na Prússia; um terremoto destruía
Guayaquil; um serial-killer aterrorizava a Dalmácia; milhares morriam de fome
na Lapônia; o amigo em Quixeramobim, porém, ignorante de tudo, apenas dava um
trago e pensava “Eitcha, apagou”.
A culpa é de um americano chamado Samuel Finley Breese
Morse. Em 1825, Morse estava em Nova York pintando o retrato do marquês de
Lafayette e recebeu uma carta do pai avisando que a esposa estava doente. Morse
cavalgou por seis dias e seis noites e ao chegar em casa soube que a mulher havia
morrido antes mesmo que ele recebesse a missiva paterna.
O pintor aposentou os pinceis e decidiu dedicar o resto da
vida a criar uma engenhoca capaz de evitar que um desencontro daqueles
acontecesse novamente. Em 1835, Morse
inventou o telégrafo e o código que leva seu nome. (Leiam a história
no maravilhoso “O palácio da memória”, Nate DiMeo, Ed. Todavia).
Depois vieram Graham Bell, Bill Gates, Steve Jobs, Paul
Allen, Tim Berners-Lee, Zuckerberg e outros abusadores do sossego alheio e aqui
estamos nós chafurdando no “Show de Truman”.
Ávidos por informação. Por opinião. Por atenção sobre nossa
opinião. Tenho que saber sobre a Kamala, a Malala, a Cabala. Ler “Sapiens”,
“Como as democracias morrem”, gabaritar Netflix, Amazon, HBO. Ter sobre a
Beyoncé uma opinião crítica e criteriosa, mas ao mesmo tempo condizente com a
minha posição de homem-branco-hétero-cis de óculos com armação de tartaruga.
É uma gincana. Uma gincana contra a obscuridade. A
irrelevância. A obsolescência. O cancelamento. E o prêmio é, no fim, um segundo
antes de bater as botas, talvez, a indagação: não haveria tido uma vida mais
plena o amigo a fumar seu cigarrinho de palha em 1834 nos cafundós de
Quixeramobim?
Antonio Prata
Escritor e roteirista, autor de “Nu, de Botas”.
ilustração - Adams Carvalho/Folhapress
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