domingo, 16 de agosto de 2020

A FAMÍLIA DA BUFUNFA

Marcos Strecker, ISTOÉ
As operações nebulosas de Flávio Bolsonaro no escândalo da rachadinha estão revelando uma prática de mais de duas décadas do clã Bolsonaro: as frequentes transações em dinheiro vivo. Foi assim que o filho 01 do presidente pagou prestações de imóveis e teve diversas contas pessoais quitadas. O dinheiro vivo também foi utilizado para pagar imóveis das duas primeiras mulheres do presidente. O clã movimentou quase R$ 3 milhões dessa forma nas duas últimas décadas, em valores atualizados. A prática, em si, não é ilegal, é bom ressaltar. Mas, segundo especialistas, o uso de cédulas em grande volume dificulta a rastreabilidade da sua origem e pode servir para ocultar aumentos injustificáveis de patrimônio. Não combina com a imagem de lisura que o presidente tenta projetar desde a campanha eleitoral.
Compra de apê por R$ 638,4 mil em dinheiro vivo. Mas ele não se lembra
A prática remonta aos anos 1990. A primeira mulher do presidente, Rogéria Bolsonaro, mãe de Flávio, Carlos e Eduardo, fez pelo menos uma grande operação com dinheiro vivo, em 1996, no ano anterior à sua separação do presidente. Na época, casada com o então deputado federal Jair Bolsonaro, ela comprou em dinheiro um apartamento em Vila Isabel, na zona norte do Rio, por R$ 95 mil (mais de R$ 600 mil em valores atualizados). A segunda mulher, Ana Cristina Valle, mãe de Jair Renan, comprou 14 imóveis (apartamentos, casas e terrenos) enquanto esteve casada com o presidente, entre 1997 e 2008. Em cinco deles, o pagamento foi feito em dinheiro vivo, entre 2000 e 2006, num total de R$ 243.300 (quase R$ 700 mil, em valores atualizados). O patrimônio do casal alcançou R$ 3 milhões na época da separação. A maior parte dos imóveis ficou com Ana Cristina, que é atualmente chefe de gabinete de um vereador em Resende (RJ). Seu advogado nega com veemência a prática de qualquer ato ilícito.
Investigado desde 2018 por liderar o suposto esquema de rachadinha, o senador Flávio Bolsonaro se enrola mais a cada novo depoimento ou explicação. O volume de dinheiro vivo movimentado pelo primogênito do presidente só aumenta, sem explicações plausíveis ou convincentes. Em depoimento ao Ministério Público do Rio (MP-RJ), em 7 de julho, Flávio afirmou que “Fabrício Queiroz nunca depositou dinheiro na conta da minha esposa, pelo que eu saiba”. A declaração se choca com as apurações obtidas com a quebra de sigilos bancários. A investigação apontou um depósito de R$ 25 mil em espécie feito por Queiroz, atualmente em prisão domiciliar, na conta da mulher do senador, Fernanda Bolsonaro, em agosto de 2011. Aos promotores, o senador disse que não sabia a origem do dinheiro. “Não sei a origem do dinheiro. Mas dá uma checada direitinho que eu tenho quase certeza que não deve ter nada a ver com Queiroz”, disse aos investigadores. O ex-PM é apontado pelos promotores como o operador financeiro do esquema de desvio de recursos de funcionários de Flávio em seu gabinete na Assembleia Legislativa do Rio (Alerj). O depósito foi identificado pelo MP do Rio como uma das fontes de recursos que teriam bancado a entrada de R$ 110,5 mil do apartamento do casal na época. Flávio usou dinheiro vivo para comprar dois apartamentos na Zona Sul do Rio de Janeiro. Um em Copacabana, quitado em 2012 com R$ 638,4 mil em dinheiro vivo, segundo o MP-RJ. Flávio diz não se lembrar do pagamento em espécie. O outro teve a primeira parcela paga uma semana após Queiroz ter depositado R$ 25 mil em dinheiro na conta da mulher do senador.
As contradições de Flávio se multiplicam e levaram a argumentos implausíveis. Os investigadores descobriram que o policial militar Diego Sodré de Castro Ambrósio quitou um boleto de pagamento de um dos apartamentos. Segundo o filho do presidente, o PM se ofereceu para pagar o título, que estava para vencer, pelo aplicativo do celular, pois estavam em um churrasco. “Deixa que eu pago e depois você me dá o dinheiro”, teria dito o PM. O valor do favor: R$ 16,5 mil. Não é só de empréstimos generosos que vivia o senador. Os pagamentos em dinheiro vivo eram uma constante. Foi assim que Flávio pagou R$ 86,7 mil para a compra de 12 salas comerciais em 2008 na Barra da Tijuca, segundo as construtoras envolvidas. Flávio não negou esse pagamento em espécie, e disse que o dinheiro foi emprestado pelo pai e por um irmão. Também obteve valores emprestados de Jorge Francisco, já falecido, ex-chefe de gabinete de Jair e pai do atual ministro Jorge Oliveira (Secretaria-Geral da Presidência da República). O uso de dinheiro vivo também se estende ao irmão Carlos. Houve a utilização de uma quantia de R$ 31 mil para cobrir prejuízos que ele e Carlos Bolsonaro tiveram após investir juntos na Bolsa de Valores, em 2009.
Os argumentos do senador para justificar a conduta de Queiroz (que seria atualmente seu assessor em Brasília se “não tivesse acontecido nada de anormal”, como declarou) também são suspeitas, para dizer o mínimo. Segundo Flávio, o grande número de depósitos na conta do ex-assessor envolviam a equipe de rua que trabalhava para ele. Destinavam-se a contratar informalmente mais funcionários, fato que teria acontecido sem o seu conhecimento. Igualmente é um mistério para o senador a razão pela qual Queiroz pagou uma conta de R$ 120 mil no Hospital Albert Einstein em 2019 em dinheiro vivo. Segundo declarou o advogado do ex-PM na época, o dinheiro fazia parte de uma reserva financeira que tinha como objetivo amortizar uma dívida imobiliária. Flávio ainda contesta qualquer suspeita sobre sua loja de uma franquia de chocolates. O Ministério Público apontou na investigação que sua unidade tinha uma circulação atípica e faturava mais fora da Páscoa do que no feriado. A entrada de recursos em espécie coincidia com datas em que Queiroz arrecadava parte dos salários dos empregados do então deputado estadual. A suspeita é que tenha sido usada para lavagem de dinheiro. O volume pode chegar a R$ 1,6 milhão entre 2015 e 2018, segundo o MP-RJ.
Pagando boletos na boca do caixa
Sumido desde o final de 2018, Queiroz foi preso em junho em Atibaia (SP), em uma casa de Frederick Wassef, advogado do presidente e de Flávio. Os dois negam que soubessem que o ex-assessor vivia escondido pelo defensor de ambos. Uma situação curiosa, no mínimo. O “sumiço” de Queiroz é conveniente para o senador. O MP-RJ reuniu provas de que o ex-PM quitava boletos bancários da sua família, incluindo plano de saúde e mensalidades escolares. Nada menos que 114 boletos foram pagos com dinheiro vivo, num total de R$ 261,6 mil. O Ministério Público diz que esse montante não foi sacado das contas do casal. Para comprovar, há até imagens do ex-faz tudo da família Bolsonaro pagando boletos na boca do caixa da agência bancária na Alerj. As investigações do MP-RJ indicam que os assessores vinculados ao gabinete de Flávio repassaram pelo menos R$ 2 milhões a Queiroz, a maior parte em dinheiro vivo. Duas funcionárias eram a mãe e a ex-mulher do miliciano Adriano da Nóbrega, morto em confronto com a PM da Bahia em fevereiro. Outra era Nathália Queiroz, filha de Fabrício, que também foi funcionária do gabinete de Jair Bolsonaro em Brasília. Nathália também transferia parte de seus vencimentos para o pai quando atuava no gabinete de Jair Bolsonaro em Brasília, segundo dados levantados com a quebra de sigilo. Mas, como o presidente não pode ser denunciado por atos anteriores à posse e o MP-RJ não investiga autoridades com foro privilegiado, essas transferências não são objeto do inquérito. De acordo com os promotores, Queiroz transferia parte dos recursos do esquema da rachadinha para o patrimônio familiar de Flávio por meio de depósitos fracionados e do pagamento de despesas pessoais do ex-deputado. Flávio nega que ele ou seus familiares tenham recebido dinheiro de Queiroz ou de outros servidores lotados em seu gabinete na Alerj. Os possíveis crimes apontados pelo MP a Flávio e Queiroz são peculato, lavagem de dinheiro, ocultação de patrimônio e organização criminosa.
Flávio já tentou dez vezes barrar as investigações. MP-RJ aponta peculato, lavagem de dinheiro, ocultação de patrimônio e organização criminosa
Não são apenas as contas do senador Flávio que estão na mira da Justiça. A segunda mulher do presidente, Ana Cristina Valle, que é investigada no escândalo das rachadinhas de Flávio, teve 18 parentes empregados em gabinetes do clã Bolsonaro ao longo dos dez anos em que foi casada com o mandatário — sete como chefe de gabinete de Carlos Bolsonaro. A atual primeira-dama também está enredada em depósitos mal explicados. A quebra de sigilo bancário indicou que Fabrício Queiroz depositou na conta de Michelle um total de R$ 72 mil em 21 cheques, entre 2011 e 2016. Isso contradiz explicações do presidente dadas antes da posse. Na época, veio à tona um relatório do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) que apontava um cheque de R$ 24 mil depositado por Queiroz para Michelle. Bolsonaro alegou que se referiam à devolução de um empréstimo de R$ 40 mil feito pelo ex-assessor de Flávio e seu amigo de 30 anos. Mas, ao todo, a primeira-dama recebeu um valor bem superior: R$ 89 mil. E não só de Queiroz. A mulher do ex-PM, Márcia Oliveira de Aguiar, ex-foragida e atualmente em prisão domiciliar com o marido, também depositou outros seis cheques para Michelle, totalizando R$ 17 mil. O presidente precisa explicar ao País essas movimentações.
Apesar das tentativas de Flávio de barrar as investigações da rachadinha, o cerco se fecha. No início do mês, ele tentou tirar o caso das mãos dos promotores. Foi a décima tentativa de paralisar as apurações. Em junho, às vésperas de ser denunciado, ele já havia conseguido tirar a ação da primeira instância, utilizando o argumento do foro privilegiado — instrumento que ele e o pai publicamente sempre condenaram. Agora, diante da repercussão negativa das novas explicações aos promotores, o senador criticou o Ministério Público pelo vazamento da oitiva. Seus advogados vão pedir para que os próximos depoimentos não sejam mais gravados. Mas apostar na ocultação, para o senador, parece ser uma aposta cada vez de mais alto risco.
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