Quando eu estudei fora e vinha visitar a família, o país
parecia estar sempre à beira do precipício. Era o final dos anos 1980, período
de hiperinflação, choques heterodoxos e um confuso processo de
redemocratização. Voltava para Berkeley me perguntando como o país
sobreviveria. Quando chegava aqui de volta, porém, nada tinha mudado: nem as
coisas tinham explodido, nem nada fora resolvido. Era, como se dizia, uma
hiperatividade paralisante.
Em várias dimensões, as coisas pouco mudaram desde então.
Vemos isso na área fiscal, na questão tributária, na privatização, na abertura
comercial etc. O custo disso é imenso: os investidores se retraem, a
produtividade não aumenta e o crescimento é medíocre, gerando mais
informalidade e pobreza do que seria preciso.
A aprovação da Emenda Constitucional 95 (EC 95), que
instituiu o teto de gastos, foi um passo importante na luta contra essa
hiperatividade que não leva a lugar nenhum. Como observei à época
(glo.bo/3hgjLA1), a regra do teto permite um ajuste fiscal gradual, sem ter de
necessariamente cortar gastos, em especial aqueles com educação e saúde, cujo
mínimo foi garantido pela própria emenda. Além disso, ele reduz o custo de
financiamento do setor público.
O teto de gastos deu direção à política fiscal e ancorou as
expectativas com extraordinário sucesso. Nos três anos decorridos desde a
promulgação da EC 95, em dezembro de 2016, a despesa primária do governo
central (União, INSS e Banco Central) cresceu 1,2% ao ano (a.a.) em termos
reais, em linha com o observado em 2015-16 (0,3% a.a) e cerca de um quinto do
visto entre 1997 e 2014 (6,3% a.a.). Isso permitiu uma forte queda da taxa
Selic, de uma média de 14% em 2016 para 5,9% em 2019. Ainda assim, a inflação
caiu, de 6,3% em 2016 para 4,3% em 2019. E, mais importante, o país saiu da
recessão, com o desemprego em queda até a chegada da covid-19.
Esse quadro vinha permitindo um gradual ajuste das contas
públicas. O déficit primário do setor público consolidado caiu de 2,48% para
0,85% do PIB de 2016 para 2019. A despesa com juros sobre a dívida pública
também diminuiu, de 6,49% para 5,06% do PIB, em que pese a alta da dívida. Isso
se deu por o custo de financiamento ter caído: entre 2016 e 2019, a taxa de
juros implícita na dívida bruta caiu de 13,1% para 7,8%, enquanto para a dívida
líquida a queda foi de 17,9% para 10%.
Isso reduziu não só o custo de capital para quem quer
investir, como se vê no mercado de capitais, mas também o rendimento que as
famílias mais ricas obtêm em suas aplicações financeiras, com impactos
distributivos não triviais.
A pandemia da covid-19 levou ao acionamento de um mecanismo
previsto na EC 95, que é a realização de despesas extra-teto, via créditos
extraordinários, nas condições previstas no parágrafo 3º, artigo 167 da
Constituição Federal; no caso, o estado de calamidade pública. Para mim, mais
uma demonstração da flexibilidade bem direcionada da regra do teto.
Controlada a pandemia, e passado o estado de calamidade
pública, previsto para terminar no fim do ano, se encerra também o espaço para
esses gastos extraordinários. E esse movimento, que deveria ser natural, já que
previsto na Constituição, vem enfrentando muita oposição política. Oposição que
tende a crescer nos próximos meses. Aqui cabe diferenciar dois problemas
distintos.
O primeiro reflete o desejo de setores do Executivo e do
Congresso de gastar mais para alavancar suas chances eleitorais. Como mostram
pesquisas recentes, o Auxílio Emergencial ajudou a aumentar a popularidade do
presidente, atraindo um segmento da população antes alinhado ao PT. O fim, ou a
redução, dessa transferência de renda vai ter o impacto oposto, e
proporcionalmente até mais forte. Há também quem queira aumentar as despesas
com projetos que rendam bons palanques eleitorais. Muitos deles, se forem em
frente, perigam entrar para a longa lista de obras paradas.
O segundo diz respeito à necessidade de o orçamento passar a
refletir as prioridades que a sociedade atribui aos vários tipos de gastos
públicos, em vez de simplesmente acomodar aumentos em todos eles. Esse foi um
desafio colocado desde que o teto de gastos foi proposto. Nada mudou quanto a
isso. Ou melhor, mudou para pior. Com os gastos extras com a pandemia, a dívida
pública vai dar um salto de 20% do PIB, complicando ainda mais a gestão das
contas públicas. Respeitar o teto é ainda mais importante hoje do que antes da
pandemia. O que não significa que se vai resolver com facilidade o conflito
político entre os “donos” dos vários gastos. Mas esse é o papel da Política e o
trabalho para o qual os políticos são pagos.
O que mais impressiona nos argumentos dos que defendem
furar, flexibilizar o teto é dizer que ele terá um impacto positivo sobre a
atividade econômica. Ora, o que se defende é uma reedição do PAC, o Programa de
Aceleração do Crescimento, e da Nova Matriz Econômica, ignorando que foram
essas políticas que jogaram o Brasil na profunda recessão de 2014-16.
*Armando Castelar Pinheiro é Coordenador de Economia
Aplicada do Ibre/FGV, professor da Direito-Rio/FGV e do IE/UFRJ
Nenhum comentário:
Postar um comentário