Era 1980, e o Brasil completava 16 anos de ditadura militar
em um cenário de crise econômica progressiva, apatia política e um vazio de
lideranças. Com esse pano de fundo, um jornalista de cabelos compridos, cigarro
aceso entre os dedos e ar transgressor cobrou do ex-governador do Rio Grande do
Sul Leonel Brizola que liderasse a oposição ao governo e resgatasse a
credibilidade da população na política e nos políticos.
Brizola respondeu que era preciso “buscar uma alternativa”
que polarizasse a opinião brasileira e ganhasse a confiança interna e no
exterior. Um desafio que a oposição brasileira experimenta hoje em dia.
“O senhor está falando numa linguagem de político em que o
povo não acredita mais”, retrucou o jornalista Plínio Marcos, autor do
censurado “Navalha na Carne”, ressaltando que a “alternativa” citada por
Brizola deveria vir dele próprio.
Prosseguiu o dramaturgo: “Porque a gente sabe que o povo
precisa comer, precisa morar, precisa trabalhar, precisa de um mínimo para
viver com dignidade. Mas se vem um carismático de direita e joga essas pequenas
coisas, que são o mínimo que o ser humano quer, não leva essa massa? Não
corremos esse perigo? Não é urgente aparecer uma opção?”
Plínio Marcos dividiu a bancada com outros expoentes do
jornalismo, como Roberto D’Ávila, Samuel Wainer e Tarso de Castro, em uma
edição histórica do programa Canal Livre, de uma atualidade espantosa.
Passados 40 anos daquele confronto, duas pesquisas
relevantes, num intervalo de quatro dias, atestam que matar a fome da população
ainda é um gesto que credencia o político junto ao eleitor.
Os dois levantamentos confirmaram o crescimento da popularidade
do presidente Jair Bolsonaro, significativamente entre os mais pobres, segmento
que não contribuiu expressivamente para sua vitória em 2018.
Na sexta-feira, o Datafolha mostrou que a aprovação do
governo subiu de 32% para 37%, a maior registrada desde o início do mandato,
enquanto sua rejeição recuou dez pontos percentuais.
O principal deste levantamento é a constatação de que 53%
dos contemplados com o auxílio emergencial de R$ 600 utilizaram os recursos
para comprar alimentos. Entre os que têm menor renda, 61% utilizaram o dinheiro
para essa finalidade. Na região Nordeste, esse índice sobe para 65%.
Ontem a pesquisa XP/Ipespe apontou que aqueles que
consideram o governo ótimo ou bom foram de 30% em julho para 37% em agosto. Em
linha com o Datafolha, o levantamento verificou que a melhora na avaliação se
deu entre o segmento com renda familiar mensal de até cinco salários mínimos,
que concentra os favorecidos com o auxílio.
Os dados refletem a atualidade do alerta de Plínio Marcos:
qualquer liderança que entregasse à população suas necessidades mínimas –
comer, morar, trabalhar – “levaria a massa”. As pesquisas mostram que Bolsonaro
levou a massa.
A dúvida é se quando o valor do auxílio encolher para
patamares menores, dentro do espaço fiscal buscado pela equipe de Paulo Guedes,
e num cenário de provável aumento do desemprego, essa popularidade não irá
igualmente refluir.
Plínio Marcos também mostrou apreensão no passado com o
surgimento do “líder carismático” no mesmo cenário de vazio de lideranças, que
se repete no presente. A ideia do “carisma” é ampla e abstrata demais para em
poucas linhas carimbar o atributo em Bolsonaro. Mas é possível afirmar que o
presidente tem uma habilidade incomum de se comunicar com a população.
Pesquisas internas, que circularam recentemente entre
entusiastas da eventual candidatura de Luciano Huck, mostram que, no cenário
atual, apenas três nomes nacionais têm projeção entre os mais pobres:
Bolsonaro, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, e o apresentador.
Desse trio, Bolsonaro já se declarou candidato à reeleição e
está em pré-campanha. Lula rechaça, mas segundo declaração recente do
ex-ministro Gilberto Carvalho, teria a pretensão de voltar a concorrer, mas
para isso precisaria recuperar os direitos políticos. Huck é uma incógnita até
para ele mesmo.
O favoritismo de políticos com o dom da comunicação remete
ao ex-governador do Rio Grande do Sul e do Rio de Janeiro, Leonel Brizola, cujo
centenário será celebrado em 2022. “Embora fosse de uma família aristocrática e
fosse vertical no contato pessoal, a fala dele chegava no povão”, relembra o
cientista político Nelson Rojas de Carvalho. Embora de origem humilde, Brizola
casou-se com a filha de João Goulart, e Getúlio Vargas foi seu padrinho de
casamento.
Carvalho, que é pesquisador e professor da Universidade
Federal Rural do Rio de Janeiro (UFFRJ), diz que Bolsonaro é fruto de uma
mudança na base social que agora tem como representantes os motoristas e
entregadores de aplicativos, que se identificam com o presidente.
“Quem pilota o Uber é um sujeito descrente, isolado,
ressentido de seu posicionamento social, que não acredita em um Estado que
poderia propiciar uma educação melhor para o filho”, diz o pesquisador.
“A fala do Bolsonaro chega nele, na dimensão de valores como
família, Deus, combate à corrupção”, completa. Carvalho pondera que Lula
propiciou mobilidade social, com programas de melhoria da renda, como a
valorização do salário mínimo, mas perde força numa realidade onde o Estado
perdeu a importância”.
Voltando a 1980, Plínio Marcos questionou Brizola quanto aos
riscos do surgimento de um líder carismático. “Os perigos sempre existem, agora
nós temos que trabalhar por soluções realistas”, respondeu o caudilho.
“É um sonho admitirmos que possa surgir um aiatolá no
Brasil. Aqueles que pensaram que nós, do exílio, pudéssemos voltar como
aiatolás estão enganados. O Brasil é uma nação imensa, que precisa de uma
grande consciência daqueles que tem o mínimo de representação. As verdadeiras
lideranças vão surgir em 82, teremos uma grande surpresa”, disse Brizola, sobre
o pleito para eleição democrática de governadores. Samuel Wainer foi cético:
“se chegarmos em 82”. No presente, reina a curiosidade quanto às lideranças que
chegarão em 2022.
Nenhum comentário:
Postar um comentário