O presidente da República esmera-se no seu melhor papel, o
de quem, ao mesmo tempo, faz e desfaz. Diz e desdiz. Confunde e embaralha para
reinar sobre o apuro fiscal em que se meteu. Sempre foi assim e não deixará de
ser enquanto tiver um Congresso subserviente a esta bipolaridade.
Em 48 horas, Jair Bolsonaro tomou uma decisão contra bem
aquinhoados (o veto da anistia fiscal às igrejas isentas), recomendando ao
Congresso que a derrubasse, gravou vídeo dando cartão vermelho à turma
“sem-coração” do Ministério da Economia e dizendo que desistira de um programa
de renda básica em favor do Bolsa-Família. Por fim, ressuscitou o Renda Brasil,
pediu que o relator o incluísse no Orçamento e elogiou o ministro Paulo Guedes
e sua equipe.
Em qual desses Bolsonaros se deve acreditar? Em nenhum e em
todos eles. Como não sabe como fazer caber o Brasil dentro do PIB e não aceita
arcar com as consequências das alternativas que lhe são apresentadas, o
presidente se compraz em terceirizar uma responsabilidade que é sua.
Ao acender o fogareiro para o ministro da Economia, não significa que queira
fritá-lo. Ao apagá-lo não pretende salvá-lo. O vaivém é inócuo. Para a agenda
que move suas obsessões, Paulo Guedes hoje tem um papel decorativo. É, porém,
mais útil do que nunca a um presidente que precisa se mostrar em guerra contra
seu próprio governo.
E não apenas contra Guedes. Por um lado, Bolsonaro precisa
dosar as ambições dos parlamentares aderentes para mantê-los como sócios de sua
recondução em 2022. Por outro lado, tenta preservar o apoio daqueles que
apostam na agenda do ministro, não somente para conter a pressão sobre a dívida
pública, mas também para evitar que ponham um pé em outra canoa
precipitadamente. Por tudo isso, Paulo Guedes pode continuar a fingir ser quem
é.
É claro que o presidente não se move apenas pela intuição.
Do monitoramento das redes sociais, conclui-se, por exemplo, que o deputado que
acorda e vai dormir falando de auxílio emergencial, André Janones (Avante-MG),
teve 55 milhões de interações em suas redes sociais nos últimos 30 dias
(levantamento da Bites), mais do que o próprio Bolsonaro (36 milhões). Por
isso, o presidente avança e recua no tema para não perder o bonde.
Ao jogar a viabilização de um programa de renda mínima para
o colo do Congresso, Bolsonaro parece confiar na agenda fiscalista do
presidente da Câmara, Rodrigo Maia, que inibe uma alternativa fura-teto. Parece
acreditar que se não for viabilizada uma saída orçamentária para o programa, o
problema poderá ser debitado na conta do Congresso. Ou não.
Assim como os louros do auxílio emergencial alavancam a
popularidade presidencial, sua redução, com posterior interrupção, também podem
vir a ser debitados na sua conta. Por isso, a estratégia do presidente ainda
está longe de lhe abrir as portas do paraíso, apesar de acenar àqueles que vão
ficar sem auxílio emergencial ou renda básica, com o inferno.
A criação de novos impostos, como insiste o ministro Paulo
Guedes, esbarra no Congresso. Por isso, já há quem se mobilize, no entorno do
gabinete presidencial, em buscar alternativas para encorpar o Bolsa-Família.
Depois do vídeo, um colaborador começou a fazer as contas do quanto o governo
poderia abrir de espaço fiscal se passasse um pente fino no custeio (contratos
de aluguel e mão-de-obra terceirizada, diárias, combustível, passagens aéreas,
alimentação, uniforme e manutenção).
Um corte de 30% nos contratos de custeio, desde que
extensivo a todos os Poderes, proporcionaria uma economia próxima a dois
dígitos com a qual se viabilizaria um Bolsa Família mais robusto. Não lhe
faltam, porém, obstáculos. Desde a oposição de grandes usuários deste custeio,
como as Forças Armadas, até intermediários desses contratos que hoje estão no
time de líderes do governo no Congresso Nacional.
O relator do Orçamento, que recebeu a incumbência de arrumar
um lugar para um programa de renda básica, é o mesmo da proposta de emenda
constitucional que estabelece um gatilho quando os gastos atingirem 85% da
receita. Uma alternativa ao corte linear seria a tesoura nos penduricalhos,
extensiva a todos os Poderes.
Estivesse disposto a encará-la, porém, Bolsonaro a teria
incluído na proposta de reforma administrativa. O medo de paralisação de
corporações que movem a máquina do Estado, como a Receita Federal, e contas que
o presidente e sua família têm a ajustar com a justiça o afugentam da pauta.
Mais fácil é fazer economia em cima de serviços cujo dano é
tão extenso quanto inofensivo. Tome-se, por exemplo, a paralisia da perícia
para a concessão de benefícios do INSS por conta do coronavírus. A
regulamentação existente da telemedicina é suficiente para que a perícia seja
realizada.
O álibi da pandemia, no entanto, faz com que o governo
represe silenciosamente a concessão de benefícios. O passivo já atingiu dois
milhões de pessoas este ano, entre aposentados, doentes e acidentados, os
mesmos que, Bolsonaro, no vídeo, disse que “jamais” prejudicaria, na ilusão de
que a bomba fiscal possa ser retardada.
A resistência a medidas do gênero “choque de gestão”
empurra, cada vez mais, Bolsonaro para o papel em que ele parece se sentir mais
confortável na disputa de 2022, o de “capitão dos pobres”. Capitaneia uma
máquina pública carcomida e desigual, mas aposta que nenhum dos adversários que
virão pelo meio, é capaz de encabeçar uma proposta viável, eleitoral e
politicamente, de reforma do Estado que venha a desafiá-lo. Parece acreditar
que seja mais fácil se acomodar no lugar que ainda pertence ao PT, como
provedor do mais amplo e permanente programa de renda do país.
Ainda não se sabe com que dinheiro pretende fazer isso. Por
enquanto, com o Pantanal em chamas, uma imagem internacional esfarinhada, um
arroz pelos olhos da cara e milhões de brasileiros com a vida à deriva em 2021,
resta ao presidente confundir – sem remediar.
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