Por Vítor Sandes, Bruno
Bolognesi, Robert Bonifácio, Leon Victor de Queiroz Barbosa, Soraia Marcelino
Vieira e Helga Almeida
No artigo “Deixa a moça
trabalhar”, publicado no site da piauí, o colega e professor
Cláudio Gonçalves Couto defende a liberdade de expressão e de atuação profissional
de Gabriela Prioli, uma figura pública criticada nas redes sociais por estar
oferecendo um curso de política. De fato, temos que zelar pela liberdade de
expressão que não ultrapasse os limites constitucionais do estado de Direito,
mesmo que o conteúdo da mensagem não nos agrade ou com o qual não concordamos.
Não é sobre isso que queremos tratar aqui, porém. O que nos interessa discutir
é a última parte do artigo, na qual nosso colega se posiciona contra o
reconhecimento da profissão de cientista político.
Existem posicionamentos os mais diversos a respeito do
reconhecimento profissional da ciência política, seja no âmbito da comunidade
acadêmica, seja no ambiente não acadêmico, no dito mercado político. Trata-se
de um tema polêmico. Em nome da livre expressão, não podemos nos furtar a levar
adiante esse debate sem as amarras de preconcepções. Ao contrário de Couto,
somos a favor do reconhecimento de nossa profissão.
Cientistas políticos são, cada vez mais, requisitados para
falar à imprensa, fazer consultorias, desenvolver pesquisas, atuar no
mercado de diversas maneiras. A área, como um todo, cresceu de maneira
expressiva nos últimos anos, e já contamos, inclusive, com pelo menos dezesseis
cursos de graduação específicos de ciência política, seja em instituições
privadas ou públicas, tais como UnB, Unirio, UFPE, UFPI, Unipampa (RS),
Republicana (DF) e Uninter (PR). Essa expansão corresponde à perspectiva de que
um profissional formado na área é altamente capacitado para contribuir, de
forma distintiva, com a melhoria das práticas políticas no país, inclusive por
meio da assessoria técnica aos representantes nos três níveis federativos,
tanto no Executivo como no Legislativo. Além disso, o cientista político pode
exercer papel crucial na operação do mercado eleitoral, na formação e na gestão
de políticas públicas, assim como em diversas atividades da sociedade
civil.
No entanto, muitos desses espaços têm sido ocupados por
profissionais do direito, da comunicação social e da administração. Não por
acaso, três áreas com profissão regulamentada. Isso é esperado, afinal, quem
pode ser considerado cientista político? Em princípio, qualquer profissional.
Basta ligar a tevê ou o rádio para ver exemplos de cientistas políticos que
nunca, na verdade, tiveram nenhum treinamento na disciplina. Em suma, o
cientista político existe, mas não é reconhecido. Por isso, já há algum tempo,
professores e pesquisadores da área têm debatido formal e informalmente, tanto
nas universidades como em eventos científicos, o estado atual e os rumos da
profissão, ainda não regulamentada. Pensamos que cabe ao Estado, por meio do
Legislativo, regulamentar, delimitar sua atuação e a formação exigida, dando
garantias aos profissionais da área. Isso não é nenhuma proposta exótica, pois
é preciso lembrar que a ciência política já é regulamentada como profissão em
vários países, como Itália, México, Austrália e Suíça, entre outros,
e, obviamente, os Estados Unidos, onde a própria profissão foi inventada no
século XIX e onde foi fundada a primeira associação acadêmica e profissional,
em 1903.
Porém, o reconhecimento e a regulamentação profissional
poderiam, como disse Couto, produzir o resultado indesejável do “surgimento e o
encastelamento de cartórios”? Seria apenas uma ação corporativista por parte de
seus defensores? Pensamos que essa conclusão tão peremptória não procede. Há
diversos modelos de organização profissional, e nem todos significam o
estabelecimento de um rígido controle burocrático e oligárquico da área, como
sugere a menção que Couto fez a Robert Michels. A regulamentação de uma
profissão não precisa de ser sinônimo de corporativismo ou de criação de
“cartórios” que controlam com mãos de ferro o seu exercício. Basta ver o
exemplo da sociologia (regulamentada pela lei n° 6.888/1980), que permite que
os sociólogos exerçam as suas funções no mercado acadêmico e/ou não acadêmico
sem a interferência de um “conselho de classe” nas suas atividades –
observe-se, aliás, que um Conselho somente é criado por Projeto de Lei com
iniciativa do Executivo Federal. Por outro lado, os formados em ciências
sociais, sociologia ou sociologia política, em qualquer nível (graduação,
mestrado ou doutorado), podem ser contratados como sociólogos por entidades
públicas ou privadas e ter os seus direitos defendidos por organizações de
interesse, como os sindicatos.
Recentemente, a profissão de historiador foi reconhecida
(lei nº 14.038, de 17 de agosto de 2020) após décadas de constante empenho. Sem
essa lei, não haveria uma regulamentação clara a respeito da contratação de
historiadores para serviços especializados, como o trabalho em arquivos e
museus, tão importantes para a preservação da história do país. De fato, o
processo de regulamentação de profissões sempre foi relevante para assegurar as
condições mínimas para a melhor formação e a dignidade no trabalho – por um
lado, a regulamentação sinaliza as qualificações desejáveis para a atuação
responsável e competente no mercado de trabalho e, por outro, quem contrata o
profissional tem maior segurança a respeito dos serviços e produtos que
receberá. Isso é justo para com o trabalhador e o empregador.
Isso não quer dizer, entretanto, que um profissional que se
graduou em algum nível em outra área está automaticamente excluído da
profissão. O mercado acadêmico é e deve permanecer aberto à interdisciplinaridade,
algo previsto como diretriz em concurso público e na contratação por empresa
privada. Mas não podemos ignorar que a especialização na área ocorre, assim
como em outras áreas. E isso é sinal de profissionalização de fato, que demanda
sua regulamentação. Quando alguém precisa de um arquiteto, não espera ser
atendido por um médico, o que não quer dizer que não se possa estudar urbanismo
e saúde pública ou discutir sobre esses assuntos livremente. O diletantismo não
pode ser justificativa quando se exige responsabilidade, e quando tal
responsabilidade deve se apoiar em formação específica. Não faz sentido,
sobretudo, formar pessoal com graduação, mestrado e/ou doutorado em ciência
política e, ao mesmo tempo, dizer que qualquer um pode ser cientista político,
independentemente de sua formação. Se for assim, para que serve a formação na
área? Economistas, sociólogos, engenheiros, psicólogos, historiadores, entre
outros, podem perfeitamente estudar, analisar e discutir temas de política,
afinal, a política abrange todos os aspectos da vida humana; eles podem até
atuar como professores e pesquisadores em departamentos e programas de
pós-graduação, agregando suas abordagens a uma área que é multidisciplinar
desde o seu surgimento. Contudo, não faz sentido ser considerado um cientista
político sem ter qualquer formação na área.
Este é o debate a ser empreendido: temos que definir o que é
um cientista político profissional, bem como os seus direitos e deveres
profissionais. Essencialmente, esse debate deve ser realizado de maneira
esclarecida, focada e sem pré-noções. De preferência, dentro da própria área.
Diversos modelos que podem ser adotados; a regulamentação da profissão, vale
repetir, não necessariamente criará obstáculos à atuação de qualquer
profissional que queira tratar da política, ministrar cursos e oferecer
serviços profissionais na área. Como bem disse Couto, a política não é
propriedade da ciência política, assim como a saúde não é propriedade da
medicina. A regulamentação de uma profissão não tem por objetivo facultar o
monopólio num assunto, tema ou objeto de estudo, mas sim garantir que o
profissional formado em determinada área seja responsável por
aquilo que diz e assina. Que existam espaços onde o mais adequado é um
profissional com treinamento especializado. Qualquer graduado, ou mestre, ou
doutor em ciência política merece ter reconhecimento e os respectivos direitos
estabelecidos. Esse debate vale a pena. Há prós e contras que devem ser
sopesados, sabemos disso; só não podemos fazer objeções a priori.
Esperemos o processo deliberativo.
Por fim, a ciência política como simples vocação é um modo
de viver a disciplina que confere status aos portadores dos títulos e limita o
espaço de atuação de um contingente muito grande de pessoal qualificado. A realidade
brasileira mudou drasticamente nas últimas décadas. Os jovens que chegam à
Universidade e à ciência política hoje são de origens sociais as mais diversas
e têm necessidades e demandas que só podem ser satisfeitas por meio de uma
formação profissional que os habilite à atividade científica tanto no mundo
acadêmico, público ou privado, como nas instituições do mercado e da sociedade
civil. Sim, a ciência política ainda deve ser uma vocação, mas já estamos
atrasados na necessária discussão sobre torná-la, também, uma profissão –
reconhecida e regulamentada.
Cientista político, professor e coordenador do curso de
bacharelado em Ciência Política na Universidade Federal do Piauí (UFPI).
Cientista político, professor na Universidade Federal do
Paraná (UFPR) e editor associado da Revista de Sociologia e Política.
Cientista político, professor dos programas de pós-graduação
em ciência política, direito e políticas públicas da Universidade Federal de
Goiás.
LEON
VICTOR DE QUEIROZ BARBOSA
Cientista político, professor e vice-coordenador do mestrado
profissional em políticas públicas na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE)
Cientista política e professora na Universidade Federal
Fluminense (UFF)
Cientista política e professora da Universidade Federal do
Vale do São Francisco (Univasf)
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