No meio de agosto a advogada, professora de direito e
apresentadora da CNN Brasil Gabriela Prioli anunciou seu curso virtual de
política, o “Manual da Política Racional”. Foi o que bastou para que nas redes
(anti)sociais se iniciasse sua detratação pública. Em boa medida, isso não é
mesmo de surpreender, já que o “tribunal da internet” tem seu quê de justiça
sumária, feita de acordo com os gostos de cada um, convertido ali – ao mesmo
tempo – em acusador, juiz e verdugo; quase como na Lava Jato.
Os ataques ocorreram das mais diversas formas, provieram de
distintos campos ideológicos e ainda foram motivados por sentimentos
corporativistas. À direita do espectro, bolsonaristas de diferentes patentes e
assemelhados atacaram Prioli por seu posicionamento político. Sendo ela crítica
do governo Bolsonaro, tornou-se alvo de uma mixórdia de argumentos toscos,
dentre eles o de que ensinaria socialismo e – pior – contraditoriamente
cobrando por isso, como fazem os capitalistas. Chega a ser engraçado sugerir
que Prioli é uma propagadora do ideário socialista, mas entre aqueles para quem
até a Rede Globo é comunista, demonstra alguma coerência.
Contudo, a rusticidade não está só nessa leitura exagerada
de qualquer progressismo como comunismo. Ela aparece também na ideia de que
pessoas à esquerda (nem digo “de” esquerda) deveriam trabalhar de graça e
abdicar de confortos da vida material. Tal ideia é frequentemente expressa em
tentativas de desqualificação infantis como a do “socialista de iPhone”, a
“esquerda caviar” ou os “jantares inteligentes”. Deve-se reconhecer, contudo,
que nisso a direita rude não está sozinha, sendo ironicamente acompanhada pela
sua análoga à esquerda.
Tanto é assim que Prioli foi também detratada nas hostes
progressistas por cobrar pelo curso. Curioso como esse franciscanismo
igualitário pregado para os outros comumente desaparece quando se trata dos
próprios interesses. Por que se imagina que alguém deva trabalhar de graça, ao
mesmo tempo que se reclama por melhores salários, condições de labuta ou até
mesmo fim da exploração do trabalho pelo capital? Moralismo (que traz embutida
a hipocrisia, como bem notou Contardo Calligaris em sua coluna da Folha)
talvez seja a resposta – tanto à esquerda como à direita.
Os ataques a Prioli também tiveram, inevitavelmente, sua
dose de misoginia. Não é o caso de todos os ataques a ela dirigidos, assim como
não é necessariamente a única motivação; frequentemente a carta da misoginia é
brandida contra quaisquer críticas que se façam a uma mulher, interditando a
discussão. Porém, mesmo quando não é o motivo de base, a misoginia aparece
nessas situações como reforçador da detratação. O que vi não foram
questionamentos à competência de Prioli por ela ser mulher (talvez tenham
ocorrido também), mas com base em sua aparência – e poucas coisas são mais
sexistas quanto avaliar uma mulher com base nisso.
Previsível, tais achincalhes vieram da direita tosca, mas
não só. Ocorreram também por parte de “esquerdomachos” e, pior ainda, de
“esquerdofêmeas”: a sororidade é mandada para o espaço por algumas que se
consideram moral e politicamente (ou as duas coisas misturadas) superiores a
certas outras.
Tudo que descrevi até este ponto está no script básico dos
embates no mundo virtual. Não é à toa que surgiu a expressão “cancelamento”
para descrever tal processo, de apedrejar no mundo virtual. E prefiro aqui
falar em apedrejamento por duas razões. Uma, porque já me foi chamada a atenção
para o uso problemático do termo “linchamento”, devido à sua forte associação
com o assassinato de pessoas negras por racistas – de modo que prefiro
evitá-lo. Outra, porque a prática de apedrejar os pecadores já teve sua carga
de hipocrisia suficientemente explicitada no Evangelho – ou seja, é uma
metáfora de domínio popular, que revela o caráter não só injusto, mas também
dissimulado de se agir assim.
Um elemento menos comum, que todavia apareceu nesse
episódio, diz respeito ao corporativismo. Elemento menos comum nos
cancelamentos virtuais, não na sociedade brasileira, que fique claro. Ele até é
primo de um outro item mais frequente dos cancelamentos: o lugar de fala. E,
que fique claro, não se trata aqui de desqualificar per se a
noção de lugares de fala, mas de apontar seu uso ilegítimo, como uma carta de
Super Trunfo a ser brandida em qualquer debate, de modo a desqualificar
interlocutores que, por natureza, não dispõem dele. Ou seja, o lugar de fala
como arma sofística é o argumento de refutação impossível, que deslegitima
qualquer razão do outro. E dizer isso não implica negar a ideia de lugar de
fala como algo que tenha sentido em relações sociais entre grupos desiguais. A
esse respeito vale lembrar o excelente artigo de Antonio Engelke, publicado há três
anos na piauí.
Voltemos ao corporativismo. Não foram poucas as
alegações da suposta incapacidade de Gabriela Prioli ministrar um curso sobre
política, não sendo ela cientista política, mas jurista. Segundo tal lógica,
apenas politólogos teriam o saber competente para ensinar sobre o tema. Em
alguns casos essa alegação proveio não de cientistas políticos, mas de
internautas que parecem imaginar que cada área do conhecimento humano só cabe
dentro uma caixinha profissional, devidamente certificada por diplomas
específicos e órgãos de classe.
Ora, as fronteiras entre as áreas do conhecimento são
construções analíticas e institucionais, não um dado da natureza. Por isso
mesmo, a política como problema humano não passou a existir depois do
surgimento da ciência política como disciplina, assim como questões de saúde
não apareceram apenas após a criação da medicina.
Nenhuma disciplina acadêmica controla completamente os
conhecimentos sobre seu objeto específico de estudo, ainda que se dedique a ele
de forma mais sistemática e especializada. A saúde não é um problema só da
medicina, mas também de (entre outras) a biologia, a química, a engenharia, a
administração, a economia, a sociologia… Da mesma forma, a política é um
problema que pode ser estudado por qualquer pessoa, que certamente o fará de
sua perspectiva particular, provavelmente informada por suas áreas de formação
e atuação – e não só pela ciência política.
Quando comentei esse tema em meu Twitter, houve quem
retorquisse que Prioli daria o curso com viés jurídico. Eu concordo que é
provável que isso ocorra. E qual o problema? Viés profissional, que dá uma
perspectiva particular sobre a realidade, é como sotaque: não é defeito, mas
característica.
O pior mesmo foi ver pessoas identificadas como cientistas
políticas atacarem o que seria uma intromissão profissional de uma advogada em
seu campo de trabalho. Não me parece casual que tal reação surja justamente
quando, no âmbito da ciência política profissional, discute-se a possibilidade
de se regulamentar a profissão. Eu, particularmente, espero que isso nunca
ocorra. E explico o porquê.
A regulamentação de profissões em nosso país enseja o
surgimento e o encastelamento de cartórios. Eles se ocupam de criar guildas
profissionais ao mesmo tempo protecionistas e rentistas: tornam compulsória a
associação dos que pretendem atuar na área, exigem-lhes formação específica e
lhes cobram pagamento. Como toda organização desse tipo, tais cartórios não
raramente se tornam posse de alguns burocratas corporativos, que as dirigem
como se fossem sua propriedade particular e tornam a guilda cada vez mais
agressiva e fechada. A ciência política brasileira não só não precisa de algo
assim: ela seria prejudicada por algo assim. Para explicitar, conto uma
historinha.
Há mais de uma década, quando fui chefe do Departamento de
Política da PUC-SP, recebi um curioso ofício, que me foi encaminhado pela
reitoria da Universidade. Ele era de autoria de uma obscura organização
profissional de sociólogos. Ela nos cobrava contratar em concursos docentes
apenas pessoas graduadas em ciências sociais. Foi uma tentativa de carteirada
cartorial corporativa sem lastro, já que (felizmente) não havia qualquer
regulamentação que nos obrigasse a isso. Respondi à reitoria pedindo que
simplesmente ignorasse esse blefe cartorial, numa carta desaforada que depois
foi reproduzida no site da ABCP (Associação Brasileira de Ciência Política).
Se os melhores departamentos das áreas de ciências sociais
do mundo fossem seguir tal diretriz, não teriam entre seus professores alguns
dos melhores quadros científicos.
Já como professor da FGV EAESP, tive a oportunidade em
alguns eventos abertos ao público, de ver a defesa, por algum membro de
Conselho de Administração, de prática similar, exigindo que apenas bacharéis em
administração fossem professores na Escola. Se isso ocorresse, boa parte de
meus colegas (engenheiros, economistas, juristas…) não poderia integrar o corpo
docente. Eu mesmo não estaria lá e, menos ainda, seria coordenador de um
mestrado em administração.
Eis o risco que se corre caso venha a ser regulamentada a
profissão de cientista político, criando um órgão de classe ao qual os
politólogos deverão prestar vassalagem. Em pouco tempo, em conformidade com a
tendência notada por Robert Michels em sua lei de ferro da oligarquia,
provavelmente tais cartórios seriam capturados e, ato contínuo, transformados
em fonte de renda e poder de seus dirigentes, às expensas da efetiva
competência profissional das pessoas.
Claro, porém, que, ansiando pela guarida de seus interesses
profissionais, colegas defendem a regulamentação da profissão de cientista
político. Espero que os mais sensatos sejam convencidos do contrário. O caso
envolvendo Gabriela Prioli, porém, demonstrou que para alguns o que importa
mesmo é uma reserva cartorial de mercado, disfarçada de reserva de mercado
epistêmico e disciplinar. Coisas destes tempos que vivemos, em que até o
corporativismo rasteiro se faz passar por progressismo.
Cientista político, coordenador do Mestrado em Gestão e
Políticas Públicas da FGV-SP. Produtor do canal do YouTube Fora da Política Não
há Salvação.
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