segunda-feira, 14 de setembro de 2020

JABUTI DE BRASÍLIA E A FAUNA DO PANTANAL

Artigo de Fernando Gabeira

O jabuti foi adotado em Brasília com base nessa afirmação: jabuti não sobe em árvore, se está lá é porque alguém o colocou.

Jabuti numa lei é algo que não tem uma relação orgânica com o texto, é artificialmente introduzido para atender ao interesse de alguém. Em Brasília como na natureza, há jabutis vistosos e discretos. O que foi aprovado na Câmara é do tipo jabuti-piranga, que pode ser reconhecido de longe. O perdão de uma dívida de R$ 1 bilhão contraída por igrejas em suas transações comerciais foi aprovado pela maioria dos deputados.

Coube ao presidente rejeitar esse desafio de contrariar a Constituição para favorecer pastores que são também importantes cabos eleitorais.

Na mesma semana em que o imenso jabuti-piranga passeava pelo Congresso, houve uma estranha reunião no Palácio do Planalto com o presidente e ministros. Uma jovem, também estranha, perguntou se o Pantanal estava queimando. A resposta foi uma gargalhada geral. Em meio aos risos, alguém respondeu também sorrindo: sim, o Pantanal está queimando, mas o presidente já mandou dez aviões para combater o fogo.

Àquela altura, o Pantanal já havia perdido 12% de sua cobertura vegetal. Não só raríssimas araras-azuis estavam ameaçadas, mas no norte, perto de Poconé, a maior concentração de onças-pintadas corria alto risco de ser atingida pelo fogo.

Isso sem mencionar a destruição do entorno do Parque da Chapada dos Guimarães, da intensa fumaça em torno de Cuiabá, ampliando o perigo de doenças respiratórias.

No Parque do Xingu, já na Amazônia, uma pequena brigada indígena tentava conter um fogo de nove quilômetros. Quanta tragédia para a região. Há poucos dias morreu uma de suas mais importantes vozes: Aritana , o líder yawalapiti. O próprio Raoni, o mais conhecido entre os caiapós, perdeu a mulher. Foi contaminado por Covid-19 e duas vezes internado.

De que riem nos palácios de Brasília? A perda de 12% do Pantanal nos empobrece. O fogo no Xingu é uma prova de que Bolsonaro mente quando diz que não há incêndios na Amazônia.

Muito bicho morrendo, árvores carbonizadas. Até a Operação Lava-Jato parece ter dado seu último tiro ao desfechar uma investigação que se aproximou perigosamente da Justiça, o território intocado no suspeito universo institucional brasileiro.

Muitas pessoas sensatas advertem o governo e o agribusiness de que o capital pode nos deserdar, os consumidores podem nos punir. É preciso acenar com essa dimensão da realidade para comovê-los. São incapazes de perceber como o desmatamento influi no regime de chuvas, e isso vai afetar nossa produtividade, pode produzir mais fome no futuro.

Provavelmente, devem dizer entre si: Israel produz no deserto, logo isso não nos intimida. Acontece que Israel já é um deserto, não o escolheu. Ninguém seria estúpido a ponto de optar por se transformar num deserto.

Exceto, talvez, nos países onde abundam os jabutis. Um simples jabuti-tinga pode garantir na lei uma passagem gratuita de toda essa gente para Miami.

O problema é que, abraçados com os trogloditas tipo Trump no norte, vão descobrir muito rapidamente a impossibilidade do jabuti decisivo: não existe planeta B. E vão nos deixar aqui com a terra calcinada, o pesado silêncio da ausência dos pássaros e o gosto amargo de ter compartilhado o país com gente que ri da própria destruição.

Também há limites para o lamento. Ainda se discute no Pantanal se vai ou não ser usado o retardante químico, uma outra forma de combater as chamas. Assim que passar esta fase, será preciso um plano de recuperação. No incêndio anterior à pandemia, já era evidente que os recursos para combater o fogo são limitados.

O Pantanal tem expressão internacional para atrair um grande projeto de recuperação. No passado, cheguei a propor que se separasse dos dois estados de Mato Grosso, tornando-se uma região autônoma, regida por um comitê de bacia.

Mas isso dependia do voto nos dois estados, e perderíamos de lavada. No entanto era a forma de canalizar recursos diretamente e de criar as bases para conservá-lo.

A estação de queimadas, tanto aqui como lá fora, foi severa este ano. E as mudanças climáticas anunciam que, da próxima vez, virá mais fogo.

Artigo publicado no jornal O Globo em 14/09/2020

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