“Profetizar é tão difícil para trás como para diante. O que
aconteceu esclarece-nos bem pouco sobre o que teria acontecido. Quando se diz
que outra medida teria estas ou aquelas consequências, subentende-se que é tudo
o mais se passando como se passou.”
O alerta de Joaquim Nabuco dizia
respeito à dinâmica dos projetos de abolição da escravatura, mas joga luz sobre
o que teria acontecido com o governo Bolsonaro se
a pandemia não tivesse ocorrido. Nabuco raciocinava em termos de contrafactuais
e mecanismos: para eventos singulares o suposto do ceteris paribus (“tudo o
mais constante”) seria insustentável.
Feito o alerta, podemos fazer a conjetura que na ausência da
pandemia o principal evento recente —a formação de uma base parlamentar do
governo— teria ocorrido de qualquer forma, pois foi deflagrado em resposta à
janela que se abriu para o impeachment.
Afinal, então, quais os principais impactos da
pandemia?
O primeiro é que desmantelou a agenda pública: sai costumes,
corrupção, segurança, reformas, entra crise sanitária e seus efeitos. O cenário
de uma conflagração social desestabilizante causou pânico: Bolsonaro
mimetizou Trump que
tomou medidas cavalares na dose ao mesmo tempo em que fazia pouco caso da
pandemia.
As declarações recentes de Bob Woodward
confirmam a
previsão já feita anteriormente. Haverá guerra de narrativas: a do
estadista —a referência aqui será Churchill para quem a verdade seria “tão
preciosa que deve ser blindada por mentiras”—; e a do tirano irresponsável —em
que opositores irão brandir as mortes que poderiam ser evitadas.
O segundo impacto é um efeito não antecipado: o remédio
anticaos (o auxílio) revelou-se crucial para a popularidade presidencial. O
terceiro é consequência do primeiro e terá efeito retardado: a agenda pública
passa a ser vertebrada, como no passado recente, em termos de “quem redistribui
mais e melhor”. Sai a cacofonia hiperpolitizada e de costumes, entra o Renda
Brasil.
Especula-se com base na assimetria cognitiva entre perdas e
ganhos, identificada por Kahneman e Tversky, que a “super-reação” ao fim do
auxílio anulará os benefícios gerados. Improvável: ele será descontinuado pelo
seu próprio criador, não é um direito estabelecido (entitlement, no jargão) e
foi anunciado como temporário.
Isso não quer dizer, no entanto, que desemprego, pressões
inflacionárias e queda da renda não terão consequências políticas. Mas aqui é o
clássico “voto econômico” da literatura que seguramente terá impacto decisivo,
mas gradativo. Quanto mais perto do fim (eleição) maior forte a lembrança do
sofrimento econômico. Como
nas colonoscopias, segundo Kahneman.
Marcus André Melo
Professor da Universidade Federal de Pernambuco e
ex-professor visitante do MIT e da Universidade Yale (EUA).
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