Em célebre passagem da Bíblia (Mateus 22:17-21), o próprio
Cristo aconselha a pagar os impostos em dia: “Dai, pois, a César o que é de
César, a Deus o que é de Deus”. Religioso como diz ser, o presidente Jair
Bolsonaro deve conhecer essa prédica, mas aparentemente se esqueceu dela ao
defender a criação de “instrumentos normativos” para permitir que entidades
religiosas, já isentas do pagamento de impostos, deixem de pagar também
contribuições, como a Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL) e a
previdenciária.
A defesa da isenção total para igrejas foi feita depois que
Bolsonaro se viu na contingência de, muito a contragosto, vetar um “jabuti”
incorporado ao Projeto de Lei 1.581/2020, que trata de acordos para pagamento
de precatórios entre a União e seus credores. Se sancionado pelo presidente, o
tal quelônio que a Câmara desavergonhadamente aprovou anistiaria R$ 1 bilhão em
débitos tributários das igrejas, segundo cálculos da equipe econômica.
O Ministério da Economia, obviamente, recomendou a Bolsonaro
que vetasse esse dispositivo, que já seria absurdo em condições normais, mas
que se tornaria especialmente ofensivo diante do quadro de penúria fiscal e de
despesas crescentes com a pandemia de covid-19. O presidente o fez, mas apenas
parcialmente – manteve uma anistia a multas aplicadas pela Receita Federal pela
não quitação de tributos sobre a chamada “prebenda”, nome que se dá ao
pagamento que ministros de ordens religiosas recebem, entendido como
remuneração direta ou indireta. Uma lei de junho de 2015 isentou os religiosos
desse tributo, e o dispositivo sancionado por Bolsonaro perdoa todas as
autuações feitas antes daquela data. Uma dádiva.
Não é preciso ler a Bíblia para saber que se trata de uma
imoralidade – além de uma ilegalidade. Basta consultar o Código Tributário
Nacional, cujo artigo 144 mantém multas e autuações mesmo que a lei que as
determinou seja posteriormente alterada ou revogada. Foi essa singela
constatação – a de que havia um “obstáculo jurídico incontornável”, segundo
nota da Secretaria Geral da Presidência – que fez Bolsonaro acatar a
necessidade de vetar parcialmente as manobras para privilegiar escandalosamente
os donos de igrejas evangélicas que o apoiam. Só a igreja pertencente à família
do deputado David Soares, autor do “jabuti”, deve algo em torno de R$ 38
milhões à União.
Mas a fé move montanhas. Enquanto se via obrigado a cumprir
o que determina a lei – reconhecendo que, se não o fizesse, incorreria em crime
de responsabilidade, com risco inclusive de impeachment –, o presidente
Bolsonaro estimulava os deputados a ignorá-la, derrubando seu próprio veto.
“Confesso. Caso fosse deputado ou senador, por ocasião da análise do veto que
deve ocorrer até outubro, votaria pela derrubada do mesmo (sic)”, declarou o
presidente nas redes sociais, desmoralizando de vez o instituto do veto
presidencial – fundamental no processo legislativo. Bolsonaro prometeu ainda
que apresentará “nesta semana” uma proposta de emenda constitucional para
determinar “uma possível solução para estabelecer o alcance adequado para a
imunidade das igrejas nas questões tributárias”.
Há tempos o presidente Bolsonaro vem pressionando a Receita
Federal a, segundo suas palavras, “resolver o assunto” das dívidas tributárias
das igrejas, tema de grande interesse da bancada evangélica. Diante da
resistência dos técnicos do Fisco, que preferem a ortodoxia da lei à
heterodoxia do evangelho bolsonarista, restou articular a aprovação legislativa
de alguma manobra que facilitasse o drible nas obrigações fiscais das igrejas e
de seus donos. O problema é que essa caridade com chapéu alheio, além de ser
acintosa em tempos de pandemia, só se presta a alimentar a base de apoio de
Bolsonaro com vista à sua reeleição, o único projeto claro de sua Presidência
até o momento.
Já os brasileiros comuns – religiosos ou ateus – continuarão
obrigados a pagar seus impostos em dia, sem a menor possibilidade de perdão –
que, no Brasil de Bolsonaro, está reservado somente a uns poucos eleitos.
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