Se o governo federal está insatisfeito com o que a lei
brasileira dispõe sobre o aborto, o caminho é reunir apoio político no
Congresso para mudar a legislação. Vigente desde 1942, o Código Penal
estabelece que “não se pune o aborto praticado por médico: (i) se não há outro
meio de salvar a vida da gestante; e (ii) se a gravidez resulta de estupro e o
aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu
representante legal”.
Para manifestar oposição a essas disposições da lei penal, o
governo de Jair Bolsonaro criou uma aberração jurídica. Assinada no final de
agosto pelo general de brigada intendente Eduardo Pazuello, que ocupa interinamente
o cargo de ministro da Saúde, a Portaria 2.282/20 obriga a que médicos e
profissionais de saúde notifiquem a polícia a respeito dos casos de vítimas de
estupro que desejam realizar aborto. “É obrigatória a notificação à autoridade
policial pelo médico, demais profissionais de saúde ou responsáveis pelo
estabelecimento de saúde que acolheram a paciente dos casos em que houver
indícios ou confirmação do crime de estupro”, diz o art. 1.º da portaria.
Em primeiro lugar, a Portaria 2.282/20 é ilegal. Não cabe a
ato administrativo inovar, criando obrigação sem amparo legal prévio. Como diz
a Constituição, “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa
senão em virtude de lei” (art. 5.º, II). Não pode, assim, o ministro da Saúde
impor uma obrigação aos profissionais de saúde, por mais que o presidente da
República – ou quem quer seja – o ordene. Ministro de Estado pode expedir
instruções para a execução da lei, mas não pode criar obrigação legal.
Além de ilegal, a Portaria 2.282/20 perverte os papéis
profissionais, transformando médicos em agentes de investigação criminal. “Os
profissionais mencionados no caput deverão preservar possíveis evidências
materiais do crime de estupro a serem entregues imediatamente à autoridade
policial, tais como fragmentos de embrião ou feto com vistas à realização de
confrontos genéticos que poderão levar à identificação do respectivo autor do
crime”, fixa a portaria.
O papel do Ministério da Saúde é cuidar da saúde da
população. Não é inventar procedimentos para que os serviços de saúde atuem
como braço policial do Estado. Se em tempos normais tal manipulação da área da
saúde já seria desumana, o caso ganha contornos ainda mais dramáticos em meio a
uma pandemia.
Mas a Portaria 2.282/20 tem um traço ainda mais nefasto. Tal
como enuncia o general intendente Pazuello, o ato “dispõe sobre o Procedimento
de Justificação e Autorização da Interrupção da Gravidez nos casos previstos em
lei, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS)”. Ora, sendo esse o conteúdo, é
evidente que as disposições da portaria afetam pessoas que são vítimas –
mulheres grávidas em decorrência de um estupro. Elas não são criminosas. No
entanto, e aqui está a maior aberração da portaria ministerial, as gestantes
são tratadas como se estivessem afrontando a lei. Eis o completo disparate. O
Código Penal não as pune, mas o Ministério da Saúde deseja encontrar um modo de
dar-lhes algum castigo.
Em total descompasso com o que deve ser um atendimento
médico, o general de brigada Pazuello impôs, por exemplo, que as gestantes e,
em caso de vítimas menores de idade, seus representantes legais sejam
advertidos sobre a previsão dos crimes de falsidade ideológica e de aborto
“caso não tenha sido vítima do crime de estupro”. Hospital é para tratar da
saúde. Sua finalidade não é atemorizar ou advertir sobre a lei penal, ainda
mais quem se encontra em situação de clara vulnerabilidade.
O teor da Portaria 2.282/20 não deixa dúvidas. Seu objetivo
não é regulamentar uma atividade médica. Sua finalidade é persecutória e
intimidatória. Em vez de cuidar da saúde, o Ministério da Saúde ocupa-se, no
meio de uma pandemia, de patrocinar política ideológica, à custa de gestantes
vítimas de estupro, muitas delas menores de idade. Essa tática não é apenas
ilegal. É desumana.
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