terça-feira, 8 de setembro de 2020

PORTARIA DESUMANA

Editorial O Estado de S.Paulo
Se o governo federal está insatisfeito com o que a lei brasileira dispõe sobre o aborto, o caminho é reunir apoio político no Congresso para mudar a legislação. Vigente desde 1942, o Código Penal estabelece que “não se pune o aborto praticado por médico: (i) se não há outro meio de salvar a vida da gestante; e (ii) se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal”.
Para manifestar oposição a essas disposições da lei penal, o governo de Jair Bolsonaro criou uma aberração jurídica. Assinada no final de agosto pelo general de brigada intendente Eduardo Pazuello, que ocupa interinamente o cargo de ministro da Saúde, a Portaria 2.282/20 obriga a que médicos e profissionais de saúde notifiquem a polícia a respeito dos casos de vítimas de estupro que desejam realizar aborto. “É obrigatória a notificação à autoridade policial pelo médico, demais profissionais de saúde ou responsáveis pelo estabelecimento de saúde que acolheram a paciente dos casos em que houver indícios ou confirmação do crime de estupro”, diz o art. 1.º da portaria.
Em primeiro lugar, a Portaria 2.282/20 é ilegal. Não cabe a ato administrativo inovar, criando obrigação sem amparo legal prévio. Como diz a Constituição, “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei” (art. 5.º, II). Não pode, assim, o ministro da Saúde impor uma obrigação aos profissionais de saúde, por mais que o presidente da República – ou quem quer seja – o ordene. Ministro de Estado pode expedir instruções para a execução da lei, mas não pode criar obrigação legal.
Além de ilegal, a Portaria 2.282/20 perverte os papéis profissionais, transformando médicos em agentes de investigação criminal. “Os profissionais mencionados no caput deverão preservar possíveis evidências materiais do crime de estupro a serem entregues imediatamente à autoridade policial, tais como fragmentos de embrião ou feto com vistas à realização de confrontos genéticos que poderão levar à identificação do respectivo autor do crime”, fixa a portaria.
O papel do Ministério da Saúde é cuidar da saúde da população. Não é inventar procedimentos para que os serviços de saúde atuem como braço policial do Estado. Se em tempos normais tal manipulação da área da saúde já seria desumana, o caso ganha contornos ainda mais dramáticos em meio a uma pandemia.
Mas a Portaria 2.282/20 tem um traço ainda mais nefasto. Tal como enuncia o general intendente Pazuello, o ato “dispõe sobre o Procedimento de Justificação e Autorização da Interrupção da Gravidez nos casos previstos em lei, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS)”. Ora, sendo esse o conteúdo, é evidente que as disposições da portaria afetam pessoas que são vítimas – mulheres grávidas em decorrência de um estupro. Elas não são criminosas. No entanto, e aqui está a maior aberração da portaria ministerial, as gestantes são tratadas como se estivessem afrontando a lei. Eis o completo disparate. O Código Penal não as pune, mas o Ministério da Saúde deseja encontrar um modo de dar-lhes algum castigo. 
Em total descompasso com o que deve ser um atendimento médico, o general de brigada Pazuello impôs, por exemplo, que as gestantes e, em caso de vítimas menores de idade, seus representantes legais sejam advertidos sobre a previsão dos crimes de falsidade ideológica e de aborto “caso não tenha sido vítima do crime de estupro”. Hospital é para tratar da saúde. Sua finalidade não é atemorizar ou advertir sobre a lei penal, ainda mais quem se encontra em situação de clara vulnerabilidade.
O teor da Portaria 2.282/20 não deixa dúvidas. Seu objetivo não é regulamentar uma atividade médica. Sua finalidade é persecutória e intimidatória. Em vez de cuidar da saúde, o Ministério da Saúde ocupa-se, no meio de uma pandemia, de patrocinar política ideológica, à custa de gestantes vítimas de estupro, muitas delas menores de idade. Essa tática não é apenas ilegal. É desumana.
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